Sabe quando você se depara com algo tão intenso e inesperado que você demora de processar a situação e só se dá conta de tudo horas depois? Assim foi a minha noite. A ficha só veio a cair hoje cedo quando, por acaso, acordei de um breve cochilo que consegui dar. As imagens de Camila em um estado aterrorizado me assombravam mais do que a situação em si, o sentimento de culpa apertava meu coração, esfriava meu corpo e bloqueava minha garganta como a pior das doenças. Só em saber que eu fui culpada de tudo aquilo já bastava para minha auto retaliação. Por que você foi tocar naquele assunto, Lauren? Por que você tinha de insistir? Por que tão estúpida em não ter notado antes?
O fato de não conseguir ver não a impediu de notar minhas atitudes e a fazer sentir julgada naquele momento. Mas não era nada daquilo, na verdade era o oposto. Eu me sentia responsável por ela, por cuidar dela e de certa forma me culpei e adotei o que um dia foi seu sofrimento. Eu estava me condenando por não tê-la conhecido antes, por ninguém tê-la ajudado ou por aquilo ter chegado tão longe, mesmo não sabendo nem o que deu seu início.
Mas por que? Por que eu estava assumindo toda aquela culpa? Ela era só mais uma garota. Por que eu estava apegada a ela de tal maneira? Milhares de perguntas me aterrorizaram naquela noite e o sono foi a menor das minhas preocupações. Normani havia me acolhido oficialmente em sua casa e agora dormia ao meu lado. Eu podia acordá-la a qualquer momento se sentisse que fosse preciso, sei que ela seria a melhor amiga do mundo e iria me ouvir e me aconselhar, mas não o fiz. Preferi pensar, eu mesma, os meus problemas.
O sol surgia no horizonte quando decidi que sairia para um passeio. Vesti uma roupa confortável e arrumada, já que teria que encontrar meu pai mais tarde, e fiz meu caminho pelas ruas de Nova York. Não é mentira quando dizem que essa é a cidade que nunca dorme, deveria ser pouco depois das cinco da manhã e um mutirão de carros já ocupavam as pistas. Quando me dei conta estava em um dos vagões do metrô procurando o melhor lugar para sentar entre tantos outros vazios. Àquela hora algumas pessoas já ocupavam alguns acentos ali, todos prontos para mais um dia de rotinas incansáveis trajando a determinação no olhar. Encontrei um espaço vazio no canto, próximo à parede, e ali mesmo me alojei. Não demorou muito para entrar em meu estado de transe, meus olhos se mantiveram fixos no piso à minha frente enquanto minha mente pulava de pensamento em pensamento e todos envolviam Camila. Ela estava bem? Seria estranho se eu fosse a seu encontro? Meu coração disparava com minhas próprias respostas à cada pergunta. O engraçado era que eu me permitia dar uma positiva e uma negativa e me angustiava ao não saber em qual acreditar mais. Talvez essa fosse minha forma de me castigar, eu sabia que uma daquelas vozes era a minha consciência, mas não conseguia distinguir qual.
Após algumas muitas horas viajando por todos os cantos da cidade, sem nem me dar conta, eu havia chegado à minha conclusão e agora estava sentada na enorme sala de escritório do meu pai o esperando. Queria terminar logo com aquilo, tudo ali gritava superioridade e não poderia me enojar menos.
- Bom dia, Lauren - ouvi sua voz vindo da porta atrás de mim e virei levemente o rosto, o suficiente para pegá-lo com meu canto de olho.
- Bom dia - grunhi sem humor.
- Então Michael, ficará a seu cargo definir as novas petições para o financeiro, tem algo de estranho com os gastos da empresa.
Escutei outra voz familiar e terminei de girar sobre meus calcanhares para ver Alejandro já se despedindo. Os dois terminaram o que estavam conversando e então ele pareceu me notar.
- Olá Lauren - seu cumprimento foi tão genuíno que me arrancou um sorriso - Veio cuidar dos negócios também? Acho que seu velho pode precisar de ajuda logo logo.
- Deus me livre, com todo respeito. Essa coisa de gerenciar empresas não é pra mim.
- Ela não conseguiu nem cuidar do seu peixinho, que dirá uma empresa - meu pai riu sozinho enquanto fazia seu caminho até sua mesa.
- Bom, eu tenho certeza que você pode fazer o que quiser - Alejandro piscou para mim e lançou um sorriso divertido. Me perguntava por que não poderia ser filha dele, Camila deveria ser tão sortuda. Camila!
- Senhor Cabello?! - aumentei a voz tentando impedi-lo de deixar a sala como ia fazendo. Seus olhos voltaram de novo até os meus - Conheci sua filha ontem, Camila. Como ela está?
- Verdade? - ele ergueu as sobrancelhas - Que mundo pequeno. Ela está bem, obrigado por perguntar - ele pareceu não entender minha última pergunta e aquilo me intrigou.
- Ela é uma ótima pessoa, estava lhe contandosobre meu período na Merle.
Joguei a bomba e esperei ver se estourava ou se falhava, mantendo uma distância segura. Cruzei os braço, joguei o peso em uma das pernas e cerrei os olhos nos seus tentando parecer o mais confiante possível e ele logo percebeu, seu corpo ficou tenso e visivelmente desconfortado. Ele mordeu a isca.
- Ela pareceu me compreendee, mas não pudemos conversar muito, pois ela teve que sair cedo. - Pendi a cabeça o analisando minuciosamente.
- Que pena, ela é ótima ouvinte, quem sabe uma hora outra?! - retibui seu sorriso amarelo com um cínico. - Até mais.
Acompanhei seus passos através da parede de vidro que dava para o corredor do prédio e esperei até que entrasse no elevador. Eu estava oficialmente desconfiada.
- Lauren! - meu pai chamou de sua mesa - O que foi isso?
Revirei os olhos e descruzei os braços, voltando para sentar em uma das cadeiras à sua frente. Nossos olhares fixos um no outro, externando o que evitávamos falar.
- Pra que tanta urgência em me ver? - cortei, indo direto ao ponto.
- Preciso falar com você sobre seu comportamento. - ele relaxou na cadeira, aquela posição que tinha sempre que estava convicto de algo. Se ele estava achando que iria me dobrar às suas decisões ele ia bater a testa na parede. - Como sabe estou no meio de uma campanha importante e não posso acomodar distrações ou eventos que possam sujar a minha imagem com a cidade, ambas coisas que você já fez no passado.
Bufei balançando a cabeça.
- O que ganho em troca? - direta ao ponto novamente.
- O que te faz pensar que está em posição para barganhar? - ele sorriu debochado e minhas sobrancelhas se ergueram imediatamente, eu odiava seu jeito sonso.
- Por favor pai, nós dois sabemos das coisas erradas que você já fez.
- Sua palavra contra a minha então?
- Não, eu vou fazer você engolir as suas com cada prova que recolhi sobre você.
Sua gargalhada súbita me assustou.
- Lauren, você não sabe mesmo blefar. Não vamos mais enrolar está bem? Quanto você quer para sair de férias mais uma vez? - ele jogou os braços sobre a mesa. Uma das mãos com um talão de cheque e a outra com uma caneta. Ambos a postos.
- Eu quero tudo que você me tirou. - seus olhos voltaram aos meus - Eu quero o dinheiro, eu quero a família, eu quero um lugar para chamar de casa e quero tudo do bom e do melhor, que nem você teve todo esse tempo.
- Você vai deixar Nova York - rosnou deixando cair as boas aparências - ou você quer que eu te mande embora novamente? Aliás, como escapou de lá?
Meu sangue ferveu dentro das veias, pulsando desesperadamente de ponta a ponta. Não me surpreenderia ver fogo saindo do meu nariz pela forma brusca que o ar se esvairava de dentro pra fora, em pensar que um dia eu pude julgar a seu favor, um dia pude pensar que a culpa era minha e que eu era a tão aclamada ovelha negra da família. Ele trazia as memória à tona sem um pingo de remorso no olhar, sem um traço de arrependimento ou pior, misericórdia. Aquela imensidão negra que me fitava era mais profunda do que imaginei. Apesar de tudo eu tinha esperança de vê-lo se tornar alguém melhor, mas tudo caiu por terra nesse exato momento.
Bati as mãos espalmadas em sua mesa e ergui meu corpo, a respiração ainda pesada, o veneno escorrendo pelos meus lábios.
- Como você ousa, depois de tudo que aconteceu, depois de tudo que eu passei naquele lugar... Como você ousa? - minhas palavras se sucediam pausadamente.
- Não banque a vítima, você nunca foi uma.
- Eu passei minha vida toda pensando que o problema era comigo.
- Eu fiz isso porque me preocupo com você.
- Você me mandou para um sanatório! - gritei totalmente fora de controle. Michael agora me olhava com um certo alarde, seus braços levemente direcionados a mim como quem tenta acalmar um pitbull - Me deixou naquele lugar durante um ano inteiro! Você tem noção do que eu passei lá? Tem noção de como foi para mim? Todas aquelas pessoas, os gritos, as incertezas, a solidão...
- Não foi como se você não merecesse - sua vez de erguer a voz e se colocar de pé - Você nos infernizava aqui todos os dias com seu comportamento, seus amigos, suas festas. Você nunca precisou de ninguém além de si e agora está tentando jogar isso na minha cara por que?
- Eu só queria atenção de vocês!
- Você só queria aparecer, desde pequena se mostrou assim...
- Eu tinha quinze anos - gritei tão alto que a qualquer momento esperava os seguranças chegarem em sua porta imaginando algo pior. O fato de sua secretária não estar em seu posto lá fora me convenceu que talvez ninguém estivesse ouvindo, estávamos no último andar e ele era praticamente hall e escritório, ninguém estava presenciando. Meus olhos foram de secos para marejados em alguns segundos e logo meu rosto estava regado pelas lágrimas. Eu chorava indignada com tudo aquilo, minha respiração funda era insignificante para acalmar meus nervos, eles estavam à flor da pele a essa altura. Podia sentir meu rosto queimando e imaginava a vermelhidão que estavam expressando. Meu Deus eu não tinha nem palavras para aquele momento, nunca estive tão inconformada comigo mesma por ter sido tão burra, por não ter feito pior, por ter esperado por uma coisa, que agora eu via, ser tão absurda e inalcançável. Engoli seco algumas muitas vezes tentando recuperar o controle.
- Eu quero um apartamento no meu nome - quebrei o silêncio quando as lágrimas finalmente cessaram - quero um carro, quero uma mesada digna e quero voltar para a Juilliard.
Ele riu esnobe.
- Depois do que você fez, quer voltar? Sabe o trabalho que me deu limpar o seu nome com aquela faculdade? - usei da mesma risada.
- Estou tocada. - seus olhos se apertaram. Engraçado que o jeito mais fácil de atingi-lo era agindo exatamente igual a ele. - Não me interessa o que você fez, você vai restaurar a minha matrícula ainda essa semana.
- Se não?
- Se não eu exponho seus contratos fraudosos com a Epic Records, suas empresas fantasmas pras quais você investe quinze por cento dos lucros daqui todos os meses e principalmente por fraude de documentação e compra de laudo médico para autorizar as minhas "férias da vida".
Toda a graça se esvaiu de seu rosto e finalmente senti que peguei no seu calo. Por mais que ele escondesse eu podia ver o traço de medo em seus olhos, havia conseguido ser convincente o bastante e senti meu corpo relaxar diante da cena.
- Como você sabe dessas coisas? - a raiva ainda estava presente em sua voz, cada vez mais baixa e grossa.
- Por muito tempo você me fez acreditar que eu era um monstro, alguém que não era digno de ser amado, que não tinha jeito... Um erro. Agora eu vou te dar reais motivos para acreditar que eu me tornei um.
Peguei minha bolsa na cadeira já me sentindo bem mais leve, o controle havia mudado de mãos e eu mostraria que aprendi com o melhor.
- Quero tudo providenciado para amanhã e se eu fosse você, não me testaria.
Dei as costas fazendo meu caminho até a porta.
- Quem você pensa que é? - ele me olhava intrigado ao longe, as mãos apoiadas na mesa. Estava me avaliando como eu sempre faço. Agora que o pior já passou a situação chegava a ser cômica, eu não podia me importar menos e aquilo era tão revigorante.
- Agora? Agora eu sou uma Jauregui.