Antes de ser transportada para outro plano, a última coisa que Natasha se lembrava era do toque de Petrus. Depois do clarão, ela estava sozinha dentro do quarto do hotel. O som da chuva foi sobreposto ao barulho estridente do som de vidro se estilhaçando e o grito de um casal. "É isso", pensou Natasha, ao reconhecer a voz do irmão, ainda um pouco confusa. Uma sensação de déjà vu subiu pelas suas costas. Tudo parecia tão real.
Natasha queria abrir a porta, mas era como se o seu corpo não obedecesse ao comando. Foi, então, que se deu conta de que algo estava errado. Era parecido com uma viagem astral, mas era mais intensa.
– Lónan! – Natasha tentou gritar, mas foi como se tivesse perdido a própria voz. – Não é possível... – ela se sentia como um boneco sem vida, aguardando o seu dono.
– Agora, abra a porta, Natasha! – a voz de Petrus ecoou na mente de Natasha. – Para alcançar a verdade, você precisa se despir das barreiras que foram criadas.
– Eu não consigo. A porta está trancada! – Natasha começou a chorar como uma criança, sentindo uma angústia dilacerando suas entranhas. Estava perdida, paralisada diante daquilo que não queria confrontar.
– Eu sei que não deve estar sendo fácil, mas você precisa tentar... – desta vez, a voz de Babi cobriu Natasha como uma manta, dando forças para que ela continuasse empurrando a porta.
Natasha coçou os olhos, incerta do que via. As paredes estavam se dobrando em sua direção, como se quisessem esmagá-la.
– Eu vou morrer... – sussurrou Natasha. Não se lembrava de quando tinha sido atingida por uma onda tão forte de pânico como aquela. – Eu não aguento mais. Me tirem daqui!
– Eu não posso permitir isso. Antes, você precisa descobrir o que Anna bloqueou – respondeu Jess, com a frieza e superioridade exigida para o momento.
– Anna... Por favor... Algo horrível está prestes a acontecer. Eu posso sentir... – Natasha suplicou e quando a porta finalmente destrancou, foi como se o momento a atropelasse. "As pessoas costumavam subestimar como o corpo e as emoções estavam conectados", pensou Natasha, "Mas não havia dor pior do que sentir o seu coração se quebrando dentro do peito e o espírito sendo esmagado pela realidade".
Natasha viu o corpo sem vida de Lónan no chão e um buraco no peito, enquanto Anna lambia a própria mão que escorria o sangue dele. Não importava quantas vezes o irmão tinha feito ela se meter em confusão, Natasha não estava preparada para se despedir dele.
A vampira avançou contra a bruxa, até que tudo ficou escuro. Engolindo uma fumaça, Natasha se viu sufocando e, em seguida, perdendo todo o controle do corpo, como se uma parte do seu cérebro tivesse sido desligada, por mais que ela tentasse lutar para se manter acordada.
– Preste atenção nas minhas palavras. O bruxo que matou seu irmão está em São Cipriano. Sua missão é encontrá-lo e se vingar. Está me ouvindo? – escutou a voz de Anna se repetindo, como um maldito eco.
Se havia qualquer dúvida sobre quem tinha matado Lónan antes, Natasha agora tinha certeza de que Anna era a assassina. Durante sua longa existência, Natasha havia conhecido seres de luz e das trevas, mas nenhum tinha a energia tão tóxica quanto a bruxa. Aquilo fazia cada célula do seu corpo estremecer.
Ser envolvida pela magia de Anna, era como mergulhar em um vulcão. Natasha sentia o peito ardendo, mas não era uma dor física – era como se o seu espírito estivesse sendo pressionado e se misturando à chama da bruxa, transformando em pedra o seu autocontrole. Uma dor que ela não podia lutar mais contra ou seria destruída.
Natasha gritou e um desejo de vingar a morte do irmão cresceu e se espalhou em todo seu corpo, como ramos selvagens, que de um instante para o outro a dor se transformara em vontade de lutar.
***
As folhas das árvores balançavam, os pássaros giravam pelo céu, mas nenhum morador da cidade havia se atrevido a ir até onde os jovens bruxos realizavam o ritual, como se mesmo sem conseguir enxergá-los, havia uma força que os repelia.
Dentro do círculo, Petrus parecia tão concentrado em manter Natasha firme na terra, com medo de que ela pudesse se mutilar em transe. Como um druida, Petrus já havia visto vários tipos de experiências e cada pessoa reagia de um modo. "Mexer com as memórias é sempre algo complicado. Não é por acaso que as pessoas começaram a se focar mais em viver o momento e deixaram em paz os fantasmas do passado. Reviver a dor pode ser uma experiência enlouquecedora", pensou Petrus.
Não foi por ingenuidade que ele optou em ajudar. Estava preparado a pagar o que fosse preciso para compensar pelo seu erro, embora a ideia de que a vida pudesse separá-lo mais uma vez de Sylvanus o amedrontasse. "Se é para ser assim, que assim seja, mas eu não vou facilitar", pensou Petrus, enquanto observava a vampira se retorcendo de dor, uma agonia imperceptível aos olhos humanos, que brotava do espírito. Mesmo para uma criatura das trevas, havia um limite.
Jess cantava as palavras que eram repetidas pelo restante do círculo.
"Aquela que se perde, um dia retorna ao lar.
Como a cachoeira que engole e devolve a água
Sob a luz da lua e das estrelas
Volte para o seu corpo, no aqui e agora".
Uma fumaça negra envolvia o corpo de Natasha, impedindo-a de respirar. Babi se aproximou da vampira e estendeu a mão sobre o rosto dela e a abriu como numa respiração boca a boca e tragou a fumaça para dentro dos próprios pulmões e soprou para o céu.
Natasha tremia e implorava pela própria vida. Ao observá-la, Jess sabia que a vampira jamais havia chegado tão próxima da morte.
– Vamos. Você precisa retornar para o seu corpo no presente! – as palavras de Jess eram como um comando que invadiam a mente de Natasha.
– Eu não consigo. Há algo me prendendo aqui... – sussurrou Natasha, enquanto gotas de sangue escorriam pelos olhos.
– Você vai matá-la. Pare! – gritou Babi.
– Eu não forcei a vampira a fazer isso. Se quisermos respostas, precisamos ir até o final.
Babi olhou para Léo e Manu que pareciam concordar com Jess. Levou um momento que parecia uma eternidade para Natasha até que ela voltasse para o momento presente em seu corpo físico.
– Sugue minha energia vital – pediu Petrus, estendendo a mão para Natasha. A vampira estava com os olhos entreabertos, mas era como se o corpo estivesse oco.
Em desespero, Babi pegou um punhal mágico e fez um leve corte no pulso de Petrus, o suficiente para que a energia dele vazasse para fora do corpo físico.
– Você vai ter que alimentá-la! – gritou Babi.
Petrus deixou a energia percorrer o seu corpo e pouco a pouco, adentrar o corpo da vampira, enquanto ela voltava para o estado de consciência.
– Eu não posso fazer isso. No estado que estou não vou conseguir manter o controle – disse Natasha, entre lágrimas.
– Deixe que eu me preocupo com isso – respondeu Petrus.
Havia uma luta dentro de Jess. Parte dela queria salvar a vampira e outra acreditava que a vida do seu círculo estaria melhor sem ela, mas se Anna ainda estava viva, precisariam de cada força possível para derrotá-la.
– É o suficiente, Petrus! – ordenou Jess, estendendo a mão em direção do druida e criando uma barreira energética.
– Meu amor. Você foi corajoso! – disse Sylvanus, se aproximando do druida e colocando um preparado de ervas sobre o corte dele. – Agora, você precisa descansar! Vamos.
Sylvanus e Léo carregaram o druida, enquanto Babi tentava acalmar Natasha.
– Aquela criatura é mais perversa do que eu jamais poderia imaginar. Se vocês vissem a frieza com a qual ela matou Lónan. Vocês não desejariam ver o que eu vi... Aquelas imagens vão me assombrar.
– Podemos dar um jeito nisso, se quiser – sugeriu Manu.
– Não. Eu não posso esquecer o que estou fazendo aqui. Não estou em São Cipriano a passeio, tampouco para brincar de bruxaria com vocês. Devo defender a honra da minha família. Nem mesmo Lónan merecia ter morrido deste jeito.
– Você vai ficar bem. Somos seus amigos e vamos te ajudar a lutar contra Anna. Você sabe que sozinha não daria conta – respondeu Babi, segurando a mão de Natasha.
Os olhos de Jess se transformaram, como se a deusa estivesse falando através dela.
– Você precisa se juntar ao nosso círculo. Não ouse negar essa oportunidade – a voz de Jess parecia mais madura.
Como se estivesse tentando traduzir as palavras de Jess, Natasha ficou um minuto em silêncio, refletindo as consequências de suas escolhas. Depois do que havia presenciado, sabia que se Anna havia destruído Lónan tão rápido, a própria vampira não tinha muitas opções. Era esperta o suficiente para saber que logo Anna viria atrás dela.
– Seria uma honra – respondeu Natasha, para a surpresa dos outros presentes.
– Eu sei que sua natureza é sombria, mas se você for entrar ao círculo, vai ter que respeitar as regras. Isso envolve deixar de drenar outras criaturas até a morte. Não posso te impedi-la de ser quem você é, mas você vai ter que honrar sua promessa diante da Deusa – naquele instante, era como se os olhos de Jess atravessavam Natasha e sua voz penetrasse seu espírito.
– Agora o círculo está completo – anunciou Manu. – Natasha pode representar o Espírito. Quem melhor do que uma criatura da noite para estar familiarizada com o véu entre os mundos?
– Espero que Natasha não nos faça arrepender dessa decisão – disse Jess.
– Ela já mostrou que é leal... – Babi sorriu para Natasha.
– Se assim for a vontade da Deusa, seja bem-vinda! – A figura de Jess parecia maior e repleta de uma onda de energia, como se a própria entidade divina falasse por ela. Ela estendeu os braços ao redor de Natasha e a abraçou, como uma velha mãe acolhe sua filha sem julgamento, deixando as emoções se moverem até ela.
Natasha não se lembrava de quando tinha sido abraçada daquela maneira. Foi como se naqueles instantes os pedaços que sangravam pela ausência de Lónan tivessem se cicatrizado e ela tivesse acabado de acordar de um sonho ruim, com a sensação de que tudo ficaria bem no presente.
***
Em um vilarejo próximo da floresta, uma loira de capuz vermelho assistia a um grupo praticando um ritual de purificação aberto ao público. Os galhos das árvores dançavam com o vento, como se imitassem os jovens girando ao redor da fogueira. As sombras e a fumaça criavam uma atmosfera mágica.
Uma energia tão maligna quanto a de Anna não passaria despercebida, mas há anos ela havia aprendido a camuflar suas intenções e manter-se neutra, criando um escudo energético capaz de fazê-la se passar por uma humana qualquer.
Enquanto o público assistia com admiração os druidas dançando e cantando em agradecimento a mais uma mudança de estação, Anna observava um homem barbudo com tranças no cabelo girando um bastão de madeira. Estava sem paciência para esperar e se a princípio havia decidido ser discreta, Anna achava mais divertido um ataque surpresa com audiência. Ela gostava do efeito que o caos causava na vida das pessoas.
Ela foi até o centro do círculo e antes que alguém pudesse a retirar, ela se abaixou e sob a capa surgiu uma pantera com olhos vermelhos. O público que assistia começou a aplaudir como se a aparição fosse parte do ritual.
A pantera pulou na fogueira e o público gritou em choque, primeiro, ao pensar que o animal morreria, depois, ao vê-lo saltando em chamas em direção a um druida. O grito de pânico e de dor do homem se espalhou pelo vilarejo ao sentir as patas queimando o seu peito. Como se esperasse pela hora que tivesse mais atenção, a pantera rugiu e seus olhos se voltaram para o líder, com três golpes na jugular, a bruxa silenciou o homem para sempre.
– Corram por suas vidas! – ordenou o líder dos druidas.
– Tallan, nós não vamos te deixar sozinho! Vamos lutar ao seu lado.
Depois de beber o sangue do pescoço do homem, a pantera fincou suas garras no peito dele e deu uma mordida no coração.
Voltando à forma humana, Anna riu tão alto, que as pessoas começaram a correr de volta para suas casas.
– Corra o quanto quiser. Você não pode se esconder de mim! – a voz da bruxa ecoou pelo vilarejo.
Temendo pela segurança do vilarejo, os druidas correram até a floresta e se esconderam; alguns foram para trás das pedras, enquanto outros subiram nas árvores.
Anna foi até a floresta e ameaçou tacar fogo em tudo. Ela sabia o quanto as florestas eram importantes para os druidas e seria o suficiente para fazê-los aparecer. A bruxa abriu a mão e começou a brincar com o fogo, antes que pudesse arremessá-lo, uma flecha perfurou sua perna.
– Para alguém que voltou dos mortos, você acha mesmo que uma flecha pode me parar? – Anna gritou tão alto, que o homem caiu da árvore e ficou tremendo no chão. – Adoro uma diversão! Quem não gosta?
A bruxa se abaixou e para o horror dos que assistiam, ela arrancou os olhos do homem, mastigou e engoliu com naturalidade, como uma jovem devorando sua caixa de bombom. Anna parecia a personificação de alguma Deusa do caos e da vingança: não importa para onde fosse, nada parava em pé e intocado perto dela.
Anna arrancou o medalhão de alce do pescoço do druida e colocou em si mesma, para mais tarde juntar com sua coleção. Por mais ligado à espiritualidade que ele fosse, bastou o contato com a energia roxa de Anna, para que o homem tremesse e ficasse paralisado, como se estivesse diante de um monstro da mitologia.
"Um Ouroboros. Uma criatura que se devora, uma cobra de duas cabeças", pensou o druida enquanto lutava para gentilmente drenar as energias das árvores e animais ao redor e sair daquele estado. "Agora eu entendo. Ela não é uma bruxa qualquer, tampouco esta é sua única face. Ela também é uma vampira. Quem vai saber quantas faces ela tem no total". Aquele pensamento fez o druida lamentar por quantas perdas e comunidades ela já havia destruído e o quanto, embora raros, estes seres poderiam ser fatais.
– Só corre... Já consegui o que queria. Corre, ou eu vou te matar. Aqui e agora. E magia fraca nenhuma como a de vocês poderá te salvar – anunciou Anna, enquanto seus dedos deslizavam pelos chifres do alcance da peça que havia roubado.
Percebendo o quanto era perigoso demais ficar perto da bruxa, o druida foi até o estábulo e montado em um cavalo fugiu para longe dali. Ele sabia que precisava alertar outros povoados mágicos, antes que fosse tarde demais.
Anna sabia que embora fosse diferente de outros bruxos, o círculo de jovens também tinha poderes e uma proteção extra. Seria humilhante demais se ela tentasse atacá-los e fosse derrotada de novo. Ou pior, ter que morrer e voltar à vida mais uma vez.
Não havia sido a primeira e provavelmente não seria a última vez, mas Anna temia que algum dia, os deuses a aprisionariam no outro plano e selariam seu corpo, para que o espírito jamais voltasse e seu coração não voltasse a bater.
Já ouvira tantas pessoas a chamando de monstro ao longo de centenas de anos, que a bruxa amaria ter nascido como um, mas, por mais que se alimentasse do caos, estava aprisionada em um corpo humano e mesmo que ela sempre rompesse os limites mágicos e dominasse técnicas que bruxos nem vampiros fossem capazes, somente 1% deles, ela também precisava cuidar de suas necessidades humanas.
Observando o druida correr, ela riu ao ver que parte do vilarejo estava em chamas e muitos druidas corriam de um lado para o outro, bem como os humanos sem magia que eles acolhiam e protegiam, em troca de auxílio financeiro, já que muitos se dedicavam integralmente à arte de curar, cuidar da natureza, guiar animais e controlar o clima.
Não queria dormir, mas Anna precisava. Sabia que se continuasse chamando tanta atenção assim, não seria só procurada por outros humanos mágicos, mas correria o risco de ser punida por divindades.
Ela encostou na árvore, abriu a palma da mão e antes de fechar os olhos, pediu para que fosse revelada qual seria sua próxima parada. Enquanto Anna via tudo escurecer, sua alma deslizava para fora do corpo. A bruxa amava viagem astral, pois era como se mesmo dormindo, ela poderia continuar planejando.
Antes que pudesse ver seu próximo destino, seu espírito foi arremessado até a cidade de São Cipriano. Quando ela viu que Natasha estava lá, mas os bruxos adolescentes ainda estavam vivos, ela gritou tão alto que seria capaz de fazer humanos sem magia perderem a audição.
– Vampirinha de merda. Achando que pode me trair e ficar impune? Não aprendeu nada com a morte de Lónan? – berrou Anna, que mesmo a milhares de quilômetros, fez Natasha se arrepiar toda.