Capítulo I

5.4K 437 947
                                    

Seus olhos claros correm ansiosamente pelas linhas do jornal como uma abelha ziguezagueia entre as flores. Não sei o que de tão interessante possa conter naquelas palavras, mas o rapaz, desde que chegou ao café, não fez outra coisa senão ficar com o nariz enfiado entre as folhas encardidas. Preciso avisá-lo que, para utilizar uma mesa, deve-se consumir algo, mas ele é tão bonito que tenho medo de que se aborreça e nunca mais volte.

Ele vira outra folha e levanta a sobrancelha esquerda, minimamente. Nenhum outro músculo facial foi movido. Suas emoções são indecifráveis, oclusas pelos traços sérios e rígidos que talham o rosto fino. Sequer pisca. Está totalmente centrado, imerso em um universo complexo de informações e fatos que compreendem a instantaneidade dos acontecimentos mundanos. Posso ouvir o seu coração pulsar mais forte a cada palavra degustada, ritmado com a respiração controlada e em harmonia com o vento forte que contorce as árvores e desprende as folhas laranja-avermelhadas de suas copas, estampando o aconchego do outono.

Não sei dizer quanto tempo ele ficará ali. Dez? Vinte? Trinta minutos? Não sei dizer o que faz ou pretende estudar. Astronomia? Medicina? Administração? Nem mesmo sei dizer se ele se interessa mais pelos esportes ou pelo meio ambiente, ou qual a sua altura, idade ou nome. Ele é enigmático e o seu charme se resume a aguçar a minha curiosidade, para que eu possa desvendar os mais intrínsecos de seus segredos, enquanto me perco inconsciente no doce sabor de seus lábios.

Ele não tem o porte físico de um atleta, mas pode ser um jogador profissional de xadrez, mesmo que ainda não seja considerado um esporte. Seu olhar atento condiz com o de um estrategista que examina minuciosamente as possibilidades, antes de fazer qualquer jogada. Pode ser, também, um membro do Greenpeace e fazer todas essas coisas como salvar tartarugas e plantar árvores, ou liderar um movimento para salvar baleias. Não, um ativista certamente não usaria uma jaqueta de couro. Talvez, seus olhos estejam percorrendo os classificados à procura de uma casa, ou, como é novo na cidade, interessados pela parte do turismo. Um jovem amante da curiosidade! Se não tivesse que trabalhar até tarde na cafeteria, poderia lhe mostrar os nossos cartões postais, como o Parque das Cegonhas, a Cachoeira da Bela Íris ou a igrejinha de salgueiro aos pés da colina, onde iremos nos casar.

Bem, na verdade, não estamos noivos. Nem mesmo nos conhecemos. Mas, se existem duas informações que precisam saber ao meu respeito, é que tenho uma habilidade incrível para planejar casamentos e um sexto sentido para achar o cara certo. Pra ser sincera, estou certa apenas de que a primeira seja a minha vocação. A segunda, por outro lado, é uma inverdade, mas nada como um pensamento positivo de uma garota esperançosa. Desde os meus cinco anos de idade até hoje, fantasiei o meu casamento duzentas e trinta e sete vezes, com noventa e quatro garotos diferentes. Todos os projetos que fiz incluíam a ornamentação, a lista de convidados, penteados, modelos de convites e até possíveis adversidades, como penetras e itens quebrados. Claro que ninguém sabe disso e tento transpassar a imagem de que sou uma garota que não liga para o romance.

Alguns desses rapazes com quem me imaginei casada continuam residindo na cidade, mas já foram descartados como possíveis noivos. Outros se mudaram. Outros, ainda, passaram pela cafeteria apenas para lanchar e nunca mais voltaram. Despedidas dolorosas, mas inevitáveis.

O rapaz à minha frente dobra o jornal e o coloca sobre a mesa. Depois, se vira para mim, permitindo que eu veja o amor impresso no seu par de olhos redondos e marcantes. Um único e simples sorriso me desmontaria ali, em cima do balcão. Nos casaríamos na semana que vem, sem muita cerimônia. Já consigo visualizá-lo usando um terno branco e uma gravata bordô, e secando as lágrimas no lencinho de renda que pertencera a Beethoven. Seu rosto, negro e perfeitamente talhado como o de um anjo, está completamente feliz. Lá fora, uma fila quilométrica de pessoas que não foram convidadas, mas que fazem de tudo para entrar. Eu chegaria na igreja um pouco mais atrasada do que o planejado, pois os cavalos que puxavam a charrete estariam com problemas gastrointestinais por ingestão de grama sintética, enquanto seria iluminada pelas centenas de luzes e flashes assim que as portas se abrissem. Quando me avistassem desfilando sobre o tapete espelhado, todos suspirariam e contemplariam a minha beleza irradiante e se encantariam com o buquê de orquídeas multicoloridas da Groenlândia e com o meu longo véu tecido pelos monges do Iêmen. A nossa festa seria conduzida pela melhor cantora da última década: Vicky Nevada. Seria simples, mas perfeito! Passaríamos a lua de mel em Lesoto e, se ele for um bom marido, posso até mesmo deixá-lo escolher o nome de um dos nossos filhos, desde que não seja composto ou comece com consoante, e que tenha um máximo de quatro letras.

As Quatro Estações de ZoéOnde histórias criam vida. Descubra agora