34 – O fim do mundo todo dia da semana
Rafael entrou no quarto de hotel e deu uma boa olhada em volta antes de dizer qualquer coisa.
Eu, com os olhos inchados de tanto chorar, abri os braços e ele me abraçou, largando uma das sacolas sobre a mesa bamba de madeira.
"Eu te trouxe comida." Ele diz, me abraçando. "E roupas da minha irmã."
Ele me entrega um pacote de papel pardo cheio de lanche e eu resisto a vontade de chorar de novo. Rafael e eu nos sentamos sobre a cama e em seguida ouvimos uma batida na porta.
"Sou eu." Fernando diz, entrando no quarto e abraçando primeiro eu, e então Rafael.
"Como tu tá pagando esse lugar?" Fernando me pergunta, se sentando ao lado de Rafael.
"A mãe tá me dando dinheiro escondida." Eu digo, abrindo o saco e mordendo um dos sanduíches que Rafael tinha trazido pra mim. "Eu não sei da onde ela tá tirando, mas isso aqui é tudo que tá dando pra pagar."
Desde o começo da semana eu estava morando em um quarto de uma pensão deplorável, com cheiro de mofo e baratas pra todos os lados. Só tinha a roupa do corpo. Minha mãe estava tentando me trazer a mochila da escola e umas roupas, mas até ela tinha dificuldades em olhar pra mim.
"Como eles descobriam, Bia?" Rafael me pergunta, fazendo carinho na pele exposta pela calça jeans do meu joelho.
"Foi o Roberto." Eu explico, limpando a boca. "Ele achou as cartas da Nicole embaixo da cama e leu elas. Quando eu cheguei em casa domingo de noite..."
Nós três trocamos um olhar longo. Todos sentíamos o mesmo medo e a mesma dor. E a saudade de Nicole em cima de tudo aquilo. Eu queria que ela estivesse ali. Sentia tanta falta dela que mal conseguia pensar em qualquer outra coisa. Se aquilo era pra acontecer, se era pra eu apanhar, era pra ela estar do meu lado pra me apoiar. Não tão longe.
"Eles não podem te expulsar assim, simplesmente. Tu é filha deles, Beatriz." Fernando dizia, com agonia na voz.
"Meu pai não vai voltar atrás. E mesmo que fosse, eu não ia morar na mesma casa que Roberto de novo. Não depois do que ele fez. Ele é meu irmão gêmeo, ele devia ter pelo menos falado comigo antes de me entregar pro meu pai. A única pessoa naquela família que vale a pena é a minha mãe."
Eu estava tão, tão magoada. Eu havia saído sozinha, no meio da noite, sem ter pra onde ir. Dormi na garagem do Pimentas, passei um dia inteiro desesperada. Era exatamente esse o tipo de coisa que eu morria de medo que acontecesse quando ela não estivesse mais por perto.
"O que tu vai fazer agora?" Rafael me pergunta.
"Eu vou embora. Assim que acabar o ano, eu vou entrar no ônibus pra Porto Alegre e não vou voltar mais."
"E como vocês vão viver? Vão morar com os pais da Nicole?" Rafael me pergunta.
"Eu não tenho ideia." Eu respondo. "Mas não tenho outra opção."
35 – Eu e ela pra sempre.
Foram os meses mais difíceis da minha vida. Se Rafael e Fernando não estivessem por perto, seriam tantos dias em que eu não teria nada pra comer porque todo o dinheiro tinha que ser guardado pro dia em que eu fosse embora, seriam tantas noites em que eu não teria como ligar pra Nicole porque me faltavam moedas pra usar um orelhão.
Ela lá e eu aqui, nós traçamos o nosso caminho. Ela trabalhou o tempo todo pra alugar um apartamento. Eu quase não passei de ano porque não conseguia estudar. Mais de uma vez eu chorei até que a dor de cabeça me pusesse pra dormir porque a vida não podia ser assim tão injusta.
Eu queria ser feliz. Eu queria acreditar que iria ser feliz. Aquela esperança era tudo que eu tinha. E as cartas de Nicole, a promessa de que nos veríamos em breve.
Minha mãe não foi me levar na rodoviária. Minha comitiva de despedida eram Rafael e Fernando, que andavam juntos o tempo todo agora.
"Eu te amo. Tu é a minha melhor amiga." Rafael disse, contendo as lágrimas. Eu, por outro lado, chorava como um bebê. Só o fato de ele estar quase chorando, algo tão raro para Rafael, já era motivo o bastante para que eu desabasse.
"Se cuidem." Eu digo, segurando a mão de cada um deles. "Se protejam, também. Escrevam pra gente. Prometam que vão visitar."
Os dois assentem com a cabeça.
"Me liga quando tu chegar. Promete." Rafael pedia.
Meu coração estava partido. Eu sabia que mesmo que voltássemos a nos encontrar jamais seria Rafael e eu contra o mundo de novo, e nos conhecíamos a tanto tempo que não conseguia pensar em um mundo sem a pessoa que me ajudou tantas vezes, que me ensinou a ser eu mesma e não uma versão de teste.
Mas quando entrei naquele ônibus e me sentei junto a janela, usando o casaco que Nicole havia deixado comigo, eu me senti feliz. Porque eu sabia que quando chegasse lá, eu estaria com ela, e nós iriamos, finalmente, viver juntas, como prometemos. Eu sabia que estava deixando muita coisa pra trás. Mas nada daquilo realmente importava porque eu não era mais a mesma pessoa, e nem aquele lugar era o mesmo pra mim.
A minha vida começou no dia que eu fui me embora.
/ / /
Eu a vi antes que ela me visse. Encostada em um pilar vermelho da rodoviária de Porto Alegre, usando um casaco rosa, azul, laranja e roxo e segurando um buquê de flores. O cabelo loiro tinha sido cortado na altura de seus ombros e ela estourava uma bola de chiclete rosa. Pelos vidros escuros do ônibus ela não teria como me ver mas eu saí correndo daquele ônibus como se estivesse pegando fogo e isso, é claro, ela viu.
Nós corremos e nos abraçamos. De alguma forma ela conseguiu me segurar quando pulei em seus braços e entrelacei minhas pernas em sua cintura. Nós ríamos e chorávamos ao mesmo tempo, a emoção de vê-la era tão grande que mal cabia em mim.
Eu seguro seu rosto entre as minhas mãos, vendo seus olhos lindos pela primeira vez em meses. Mesmo que haja uma multidão em nossa volta, eu a beijo, um beijo que apenas começa a compensar todos aqueles que eu não havia dado a ela naqueles meses separadas.
"Eu te amo." Ela diz, me colocando no chão. "Eu te amo, eu te amo, tanto, tanto."
"Eu senti tanto a tua falta." Eu a abraço, as lágrimas correndo livres por meu rosto. "Eu te amo, Nicole."
***
Nunca mais botei os pés em Rio Negro. Algumas vezes meus pensamentos voltam até lá. Me lembro da menina que eu fui e da família que nunca me apoiou. Sinto falta, às vezes, da juventude.
Mas quando vejo Nicole deitada em nossa cama, ou colocando o bule da café na mesa, ou sentada comigo na nossa banheira, quando penso na mulher que acabei por me tornar... Sei que tomei a decisão certa.
E estou orgulhosa disso. Não trocaria minha vida por nada nesse mundo.
Ao mesmo tempo em que sou a pessoa que vim a me tornar, eu pra sempre serei a menina que, aos 16 anos, foi beijada por outra garota na chuva, na porta dos fundos da casa. Porque daquele momento em diante, nada mais foi a mesma coisa.
***
FELIZ ANO NOVO, e obrigada a todos que leram e acompanharam até aqui! Eu fico muito feliz com cada comentário e cada voto em um projeto que eu quase desisti e só continuei porque a minha namorada maravilhosa gostou. Não se esqueçam de acompanhar as outras histórias da trilogia.
PS.: Durante todo o processo original de escrever a história, eu escrevi uns spin off de cenas do Rafael e do Fernando que eu vou postar logo após esse capítulo, espero que gostem.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Quando Meninas Se Beijam
RomanceRio Grande do Sul, 1986. Beatriz tem 16 anos e não sabe quem é. Sua vida parece se resumir em se esconder atrás do melhor amigo e do irmão. Essa rotina só muda quando ela conhece Nicole - uma menina que parece saída de outro planeta e que mostra a e...