Capítulo 79

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Russo. 🇷🇺

Eu tô aqui de novo, mais um dia. Ou menos um, sei lá. Perdi a conta do tempo, só sei que cada dia é igual, um ciclo de repetição, como se o relógio tivesse parado e eu estivesse preso num pesadelo. Esse lugar fede. Não é só o cheiro do mofo, da sujeira, da comida que não desce. É o cheiro do desespero, da angústia que fica impregnada. Tá em mim, na minha pele, na minha alma. É como se eu não conseguisse me lavar disso nunca mais.

Na cela, eu tenho um companheiro, o MT. O maluco fala para caralho, tem hora que irrita e dá vontade de mandar ele calar a boca, mas é a única voz além da minha que eu ouço com frequência. Quando ele fala da filha dele, dá pra ver que a saudade corrói o cara. Hoje ele começou de novo.

— Vi minha filha hoje. A garota tá enorme, parceiro. Cada dia que passa, ela tá maior. Ela vem aqui com a mãe dela, e... — Ele suspirou, o olhar perdido. — Pô, me dá uma saudade de casa, tá ligado? Arrependimento. De tudo.

Ele ficou em silêncio por um tempo, mas eu sabia que ele ia continuar. Sempre continuava.

— Dá vontade de largar tudo, fugir, sabe? Mas e aí? Vou fugir pra onde? Pra quê?

Eu tava calado, mas não sei o que me deu. Resolvi falar. Eu nunca falei da minha vida aqui, sigo calado e só faço o básico. Eles tão ligado quem eu sou, onde eu comando, me respeitam por isso. Mas evito assunto, não quero vabagundo sabendo onde é ponto fraco, só que ficar calado é foda também.

— Eu tenho uma filha de cinco meses.

Ele me olhou como se eu tivesse dito algo absurdo.

— Cinco meses? Caralho, irmão. Como é que tu tá aqui com uma filha dessa idade?

Engoli seco antes de responder.

— Eu caí quando ela tinha dias. Mal segurei ela no colo, sabe?

— Puta merda... — Ele balançou a cabeça, indignado. — Isso é foda. Tipo, não vou mentir, irmão, dói. Mas, ó, levanta a cabeça. Vai dar certo. Quanto tempo tu tem que cumprir?

— Cinco anos.

Ele riu, mas não foi um riso de alegria.

— E tem garantia?

Eu ri também, um riso amargo. Garantia... Como se isso existisse aqui dentro.

Pra desviar, perguntei sobre ele.

— E tu? Quanto tempo tá aqui?

— Dois anos. Minha filha tinha cinco quando eu entrei.

Cinco anos. Uma idade em que as crianças começam a entender o mundo.

— Agora ela tá com sete. Já entende tudo. Sabe onde eu tô, por que eu tô aqui. Antes ela perguntava pra mãe: "Cadê meu pai? Meu pai abandonou a gente?"

Essas palavras bateram como um soco no meu peito. Na minha cabeça, minha filha já tava grande, me perguntando as mesmas coisas. "Cadê meu pai? Ele não quer saber de mim?"

— Tu tem mulher? — ele perguntou, do nada.

— Tenho. A mãe dos meus filhos.

— Então, mano, se ela te visitar, traz a garota. Faz diferença.

— Não quero que ela venha aqui, que me veja nesse lugar. Não quero que minha filha cresça com essa lembrança.

Ele ficou quieto por uns segundos antes de falar.

— Eu também não queria. Quando a Dandara falou que vinha, eu fiz guerra. Disse que não queria, que ia dar barraco, que a gente ia se divorciar. Fiz de tudo pra ela não pisar aqui. Mas, mano, ficar tanto tempo longe não dá. A gente precisa disso, e as crianças também. Minha filha precisa saber que tem pai.

Fiquei refletindo sobre aquilo. Ele tinha razão? Eu queria proteger minha filha desse lugar, dessa imagem. Mas, ao mesmo tempo, não queria que ela crescesse achando que eu abandonei ela.

— E tua mulher? Tá longe? — ele perguntou.

— Tá. Em outro estado. Nem tem como vir agora.

— Então resolve com a tua filha, mano. Tu vai deixar ela crescer achando que não tem pai?

— É humilhação — soltei, mais pra mim mesmo do que pra ele. — Minha filha crescer com essa lembrança. De que metade da infância dela foi aqui, visitando esse lugar de merda. Eu não quero isso pra ela.

Ele suspirou.

— E tu tem certeza que sai daqui a cinco anos?

— Disseram que sim.

— Garantia? — Ele riu, aquela risada amarga de sempre. — Aqui não tem garantia, parceiro.

Essas palavras ficaram ecoando na minha cabeça. Eu não tinha garantia nenhuma. Podiam dizer cinco anos, mas podiam ser sete, dez. E, enquanto isso, minha mulher lá fora, meu filho crescendo sem mim, minha filha mal sabendo que eu existo.

A Luma falou que ia me esperar. Mas como, mano? A vida lá fora continua. Não quero prender ela, mas só de pensar nela vivendo a vida, me esquecendo, dá um nó na garganta. Ela é minha loira. Sempre foi. Eu sou dela. E se eu sair daqui e ela não estiver mais lá?

Eu olho pro teto mofado da cela e fecho os olhos. Tento me apegar a Deus, a alguma coisa. Mas nesse lugar é difícil ser uma pessoa melhor. Aqui dentro, a gente já tá na merda. E, se tiver a mente fraca, afunda ainda mais.

MT me cutuca, me tira dos pensamentos.

— Pensa no que eu falei, irmão. Não deixa tua filha crescer sem saber que tem pai.

Eu balanço a cabeça, mas não consigo responder. Ele volta a falar da vida dele, das visitas da filha, das brigas com a Dandara. Eu só ouço, sem realmente ouvir. Minha cabeça tá longe, em casa. Com a Luma, com meus filhos.

Eu só quero sair daqui. Sair desse cubículo que cheira a mofo e arrependimento. Mas, enquanto isso, só me resta pensar. Pensar e rezar pra que, quando eu sair, ainda tenha algo me esperando lá fora.

Lance Eterno [M]Onde histórias criam vida. Descubra agora