A pequena cabana estava aquecida pelo crepitar suave do fogo na lareira. A luz das velas dançava pelas paredes de madeira envelhecida, lançando sombras trêmulas nos cantos escuros. A mesa, simples e gasta pelo tempo, estava posta com dois pratos de barro rústico, e o cheiro suave de caldo de legumes enchia o ar. As noites foram sempre assim, tranquilas à primeira vista, mas cheias de uma tensão que nunca nos deixava esquecer o que esperava além dos muros da aldeia.
Sentei-me à mesa, observando a anciã, enquanto ela se movia lentamente pela cabana. Seus passos eram pesados, o corpo curvado pelo peso dos anos e do conhecimento que carregava. Ela pegou uma panela de barro que estava suspensa sobre a lareira, acionou um pouco do caldo quente em meu prato e, em seguida, no seu. Eu estava faminta, mas sabia que não poderia me dar ao luxo de pressa. As refeições para Miray eram algo sagrado, e apesar da fome que apertou meu estômago, esperei que ela se sentasse antes de começar a comer.
— Hoje as ervas estavam mais escassas — comentei, quebrando o silêncio, enquanto levava uma colher de alumínio à boca. O caldo era ralo, mas quente, e senti meu corpo relaxar um pouco com o calor que descia pela garganta. — A floresta está mudando.
Miray suspirou, sentando-se com dificuldade em sua cadeira. Seus olhos pequenos e cansados brilharam por um momento, enquanto ela olhava para o fogo. Ela estava preocupada, mas como sempre, era difícil tirar dela mais do que suspiros e olhares sombrios.
— A floresta sabe quando o perigo está perto, o inverno se aproxima — respondeu, a voz rouca e baixa. — Os lobos estão cada vez mais ousados, e as plantas... elas sentem isso. Não se deve confiar no silêncio da mata. Quando tudo parece calmo, é quando os problemas se aproximam.
Balancei a cabeça, entendendo suas palavras melhor do que gostaria. A cada dia, colhíamos menos grãos. Os legumes estavam cada vez mais escassos, a caça era pouca e a febre que assolava a aldeia parecia crescer com força. Tínhamos perdido três crianças essa semana, e os adultos mais velhos esravam cada vez mais fracos. Sabíamos que, sem os remédios de Miray, a aldeia já teria sucumbido há muito tempo.
— A senhora acha que vamos conseguir manter todos vivos? — queria, sem realmente esperar uma resposta reconfortante. Eu aprendi desde cedo que as esperanças na aldeia eram frágeis como as folhas secas do outono.
Ela sorri gentil, um sorriso pequeno e amargo, e mexe seu caldo com lentidão.
— Nem todos, menina. Nem todos. O inverno está à porta, e os mais fracos não sobreviverão. Isso é certo. Mas fazemos o que podemos, não é? A morte não poupa ninguém, mas nós podemos, ao menos, atrasá-la um pouco.
Essas palavras, embora duras, eram típicas de Miray. Ela nunca tentou me iludir com mentiras ou promessas vazias. Desde pequena, quando fui deixada sob seus cuidados após a morte dos meus pais, Miray sempre foi franca sobre a vida — e sobre a morte. Era uma verdade crua que aprendi cedo demais.
Minha mão apertou a colher, enquanto memórias antigas e dolorosas vinham à tona. Eu era apenas uma criança quando meus pais foram jogados para fora dos muros, como se fossem lixo. Naquela época, acreditava-se que as ofertas aos demônios poderiam apaziguá-los, e quem esteve doente ou acusado de algum crime, morreu sendo levado para fora, como um sacrifício. Meu pai era fraco, doente de uma febre que ninguém conseguia curar, minha mãe jamais o deixaria. Não tiveram a menor chance.
Eu lembro do momento em que os vi pela última vez, arrastados pelos guardas sem qualquer piedade. Aquela noite foi a pior da minha vida, e foi Miray quem me acolheu, como se eu fosse sua própria filha, quando ninguém mais quis.
— Houve alguma melhora entre os pacientes? — perguntei querendo mudar o rumo dos meus pensamentos. Não gostava de lembrar do passado, especialmente das noites em que não consegui dormir, assombrada pelos uivos que ecoavam da floresta.
— Pouca — murmurou Miray, soprando uma colher de sopa antes de levá-la aos lábios. — A pequena Alis parece estar lutando bem, mas... os outros... não tenho certeza. Fico acordada à noite, pensando no que ainda não tentamos, no que mais precisamos fazer. — Seus olhos, que há pouco estavam distantes, se estreitaram de repente, com uma ponta de amargura. — Maldito seja o conselho por não ouvir. Se nos deixarem sair além dos muros para colher o que realmente precisamos... se ao menos tivéssemos os recursos.
Eu sabia que ela estava certa. As ervas que podíamos encontrar perto dos muros não eram o bastante para lidar com uma praga tão forte quanto essa febre. Os curandeiros mais antigos sempre falavam de plantas que crescem mais longe, nas partes mais profundas da floresta, mas ninguém ousava ir até lá. Os monstros que viviam na floresta mudaram a maneira como vivíamos, como respirávamos, e o medo de ser devorado à noite sufocava a todos nós. E assim, a aldeia apodrecia aos poucos, confinada pelas próprias muralhas.O vento lá fora assobiava pelas frestas da cabana, e por um momento, o som era quase tranquilizador. Mas então, um uivo longo e agudo cortou o ar. Minha pele arrepiou, e deixei a colher cair no prato.
Miray desviou discretamente o olhar, os olhos entrecerrados, como se estivesse escutando algo mais que o uivo.
— Eles estão agitados esta noite — murmurou, mais para si mesma do que para mim.
Mais uivos cortaram o silêncio da noite. Todos na aldeia devem estar apavorados. Porém os muros altos sempre foram suficientes para manter os monstros do lado de fora.
Fiquei em silêncio, os ouvidos atentos. Havia algo diferente naquele dia. Era mais longo, mais desesperado, e o som parecia vir de vários lobos, não apenas um. Olhei para Miray, esperando que ela dissesse algo mais, mas a anciã apenas ficou ali, com o olhar perdido no fogo, como se estivesse ouvindo algo que eu não podia entender.
— O que será? — questionei, a voz saindo mais fraca do que eu pretendi. — Será que estão caçando?
Ela não respondeu imediatamente, perdida em pensamentos, a sopa esquecida, e por um momento pensei que ela não tivesse me escutado.
— Talvez — disse ela, finalmente. — Ou talvez estejam... avisando. Algo está mudando. Sinto isso nos ossos.
Miray sempre dizia que os ossos dela podiam prever coisas. Quando eu era mais nova, costumava achar isso um exagero, mas agora, com tudo que estava acontecendo, não duvidava de mais nada.
Outro uivo, mais próximo dessa vez, fez o chão da cabana vibrar levemente. Meu coração batia forte no peito, e por um segundo, me senti como uma criança novamente, sozinha e assustada no meio da noite.
— Não se preocupe, menina — Miray disse, sua voz voltando a ter o tom grave de sempre. — As muralhas ainda nos protegem, e o fogo os mantêm afastados. Mas amanhã... amanhã, saímos mais cedo. Precisamos de mais ervas antes que essa doença leve mais alguém.
Assenti, evitando o medo que ainda agarrava meu peito. Terminei de beber o resto do caldo, embora meu apetite tivesse sumido por completo. Enquanto o fogo na lareira queimava, iluminando os olhos cansados de Miray, prometi que faria o que fosse preciso para ajudar a salvar a aldeia. Mesmo que isso signifique enfrentar os lobos da floresta.
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A Herança Da Lua
WerewolfNo crepúsculo do tempo, quando a lua azul iluminar a noite e o vento sussurrar entre as árvores antigas, os lobos que caminham entre os homens despertarão. Na escuridão, um novo lobo surgirá, com olhos de fogo e coração de gelo, trazendo com ele a...