1° dia.

114 15 426
                                    

Acordei, perseguido por uma vertigem avassaladora, e com uma dor ensurdecedora.
Os corredores esbranquiçados exaltavam a neblina fora da estalagem, a mesma neblina que desperdiçava a paisagem lá de fora.
Levantaram-se obstáculos na minha frente, minhas eternas inimigas, as trancas e suas companheiras, as terríveis chaves. Não havia um ranger de chaves pelo corredor além do barulho das respirações desordenadas e espalhadas por ali, nem ao menos o tilintar do chaveiro enferrujado.
Era uma vista monótona: um longo corredor, sem cor e nem vida, cheio de crianças sentadas em fileiras meticulosamente calculadas e caladas como se suas bocas estivessem costuradas. Depois que passei pelo corredor frio, elas me encararam, fitavam cada movimento meu, me perseguiam.
A cabine não passava de uma sensação ilusória de controle, onde tudo o que eles eram poderia ser feito pó em instantes. Com suas ideias sussurrantes, aquelas crianças confiavam neles mais do que eles confiavam em sua tecnologia.
Fugi do emaranhado de botões da sala e entrei naquele corredor gélido. O cheiro de café invadia o corredor e atordoava meu olfato, deduzi que minha irmã esperava por mim.
A parede de vidro do corredor nos permitia ver as pilhas de papéis e as pequenas prisões que perpetuavam a parede cinzenta. A estalagem parecia agora mais uma grande estrutura, fria e interminável; uma prisão, um manicômio.
Parecia um cenário fantasioso que me encontrava. Não haviam coisas bonitas, além das sutis combinações de cores e paletas audaciosas, fora detalhes, era tudo em escala de cinzas, preenchido por um branco cor de leite que parecia irradiar uma certa insalubridade, havia muito pouco preto.
A maçaneta de cobre rangia, em atrito, talvez, com o metal envelhecido.
Por detrás da porta enferrujada, havia um emaranhado de fios, como que de tricô, atados a duas grandes agulhas de metal fosco, elas estavam cravadas em uma almofada.
Sobre a mesa, uma gentil fatia de pão torrada, coberta por algum tipo de geleia, com uma caneca ainda quente.
Senti meu estômago embrulhar, com a situação inerte sobre tudo. Como pôde, ela, permitir que eles morressem?
De certo modo, acho que foi um ato de piedade, já que sua perversidade e malemolência são tão repugnantes quanto sua própria existência asquerosa. Mas, também, me sinto mal por proferir essas palavras contra minha própria irmã. Não é minha intenção odiá-la, também não acho que a odeie, sua existência só me é desprezada—seus motivos e suas atitudes, não me trouxeram nada mais do que amargor.

Aquela mulher de silhueta fina me encarava, escorada nos umbrais da porta do banheiro, com um sutil sorriso. Ela passou os dedos frios como porcelana nos meus cabelos e sentou-se na mesa, me encarou, e nada disse.
Ela parecia pouco se importar com as crianças na outra sala, e muito menos com as agulhas de metal que perfuravam sua almofada.
Batendo as unhas contra a mesa, mais parecia o som de uma torneira mal fechada, ela riu sozinha com seus botões e seu caderno cheio de ideias repugnantes.
Pequenas gotas de chuva atingiram a janela, que estremeceu com o vento repentino. Minha irmã olhou para a janela, e seu sorriso desapareceu.
—É uma pena, hoje iria te mostrar algo que achei. Espero que a chuva não os destrua.
Sua voz parecia tão fria quanto suas mãos, e tinha um cheiro forte de produtos químicos. Minha irmã considera essa minha peculiaridade como algo lindo, mas isso só a torna mais nojenta aos meus olhos.
Sentei à mesa e encarei a fumaça que subia da caneca, talvez, distraído demais para perceber o atual mau humor de minha irmã. Ela saiu da mesa assim que a chuva se tornou mais forte, ficou em pé atrás de mim e apoiou suas mãos delicadamente sobre meus ombros.
As agulhas que estavam na almofada, agora, sumiram, mas o emaranhado de fios permanecia bagunçado. O caderno de minha irmã estava na pia, como se estivesse se afastando aos poucos de mim, e o café agora estava frio.
Também agora, as mãos de minha irmã estavam mais próximas do meu pescoço, lentamente, se aproximando da raiz do meu cabelo e recuando cada vez menos. Com a mão esquerda, ela segurou meu pescoço, e com a mão direita, ela contornou meu rosto.
Uma certa nostalgia substuiu o cheiro do café. Quando éramos crianças, ela costumava fazer a mesma coisa que fazia agora, geralmente, em dias chuvosos, quando os guardas acabavam por nos liberar de nossos afazeres. Subitamente, ela parava e me abraçava, mas agora ela substituiu esse costume com o ato de encarar o vazio, enquanto me segura com força, não como um abraço, como uma maneira de me prender à ela.
—Acompanhe as crianças hoje à tarde — ela sussurrou no meu ouvido.
—Esse não é o seu trabalho?
—Acabou de me ocorrer outra coisa, amanhã eu te cubro.
Minha irmã deixou o aposento, levando consigo o emaranhado de fios e seu caderno.
Permaneci divagando no mesmo lugar até um dos médicos me pedir para acompanhá-lo. A cada respiração dele, os pulmões pareciam gritar por socorro, não por nicotina, mas por algo como tuberculose ou hipotermia.
As crianças pareciam felizes ao vê-lo, por mais que ele cobrisse seu rosto com máscaras.
Erik foi o primeiro pequenino que preferiu o meu colo ao das enfermeiras. Enquanto estava sentado ao lado das crianças, ele estava abraçado ao meu pescoço, lutando contra o sono e encarando os guardas atrás de nós.
A maioria das crianças faziam muitas perguntas, mas ficavam caladas quando o Dr. Dmitry chegava perto de nós. Quando A Professora perguntava algo, elas respondiam baixinho, em uníssono, mas sempre se escolhiam quando Dmitry olhava pra elas.
Levei Erik e Ivan até a enfermaria antes de sairmos pra fora, a chuva havia parado.
A Professora iria ensiná-los sobre biologia.
Alice pediu para segurar minha mão, porque ela tem medo de sapos. Os minúsculos dedos seguraram os meus e compartilharam um certo consolo. Alice realmente tinha medo de sapos.
Havia muita lama, musgo, e, provavelmente, muitos tipos de fungos. A Professora coletou amostras e os dirigiu até a sala novamente.
Dmitry me encarou quando passei pela porta.
Haviam mais médicos na sala e muitas enfermeiras, além das intermináveis agulhas e aparelhos médicos. Alice apertou minha mão.
Dmitry passeou pela sala e começou a examinar as agulhas.
Davi deu um passo à frente.
Soltei Erik e fiquei ao lado das enfermeiras, e Alice começou a chorar.
Me encostei na parede fria e olhei pela pequena janela, onde as pequeninas pegadas ainda estavam na lama. A neblina começou a voltar, e o céu começou a chorar de novo.
Cada enfermeira segurou uma criança, enquanto as mesmas eram submetidas a testes e serviam como almofada de alfinetes. Os médicos tentavam argumentar, mas a inteligência daquelas crianças não os permitia.
Depois dos testes, cada criança foi levada pelo corredor frio, e, depois disso, temer o pior é a melhor das opções. Erik me olhou quando entrou no corredor frio, com os olhos cheios de lágrimas e com as mãozinhas tremendo. Não pude fazer nada além de lamentar por elas.
Alice foi a última das crianças. Ela estava agitada, as enfermeiras tinham medo de machucá-la. Dmitry tinha um sorriso asqueroso nos lábios, como o sorriso de minha irmã.
As lágrimas de Alice tinham cheiro de algodão doce.
Me aproximei de Alice devagar, a segurei e a coloquei em meu colo, enquanto ela suplicava para escapar dos "exames". Dmitry me fitou com desgosto.
—Sabe que se eu pudesse privá-la disso, eu a privaria, certo?
—Mas os médicos não curam a gente — disse ela. Sua voz tinha gosto de mel.
—É inevitável, vai doer mais se ficar lutando contra as enfermeiras. Dmitry vai ficar bravo.
Dmitry estava frustrado.
Se eu voltar, vai me levar pra ver o mar?
—... Vou.
Alice cedeu.
As enfermeiras restantes deram tapinhas em meus ombros e um dos médicos me pediu para acompanhá-lo, de novo.
Alice me deu seu ursinho de pelúcia. Um coelho branco.
Dmitry cuspiu no chão à minha frente antes de seguir o caminho para o corredor. Ele gostava de ver as crianças sofrerem.

Injury - InjúriaOnde histórias criam vida. Descubra agora