A Condessa Vésper/XXXI
A carta que lançou por terra o cocheiro Jorge era uma despedida da filha, declarando a seu modo os motivos que a arrastavam naquela viagem clandestina. Educação, temperamento, insuficiência de meio social, tudo isso ressaltava das palavras que a infeliz dirigia ao pai; este porém, nada viu nem compreendeu senão que a filha abandonava a casa paterna, e tanto bastou para fulminá-lo.
Laura, todavia mostrava-se na carta muito comovida e fazia ardentes promessas de boa conduta. Nada serviu para suavizar o golpe.
O pobre homem permanecia de bruços no chão. Gabriel correu a socorrê-lo, arrastou-o até a cama, e conseguiu com dificuldade estendê-lo sobre ela. Jorge não dava acordo de si, e tinha o rosto congestionado.
A situação tornava-se cada vez mais penosa. Gabriel chamou várias vezes por ele, sacudiu-lhe vigorosamente os ombros. Nada! o homem continuava inanimado, a tirar da garganta uns grunhidos aterradores.
O rapaz correu então à sala, abriu as janelas. Estava aflito! precisava de alguém que se encarregasse do cocheiro, porque ele não podia deixar de ir a bordo. Mas o silêncio da rua desesperou-o. A tarde fechava-se de todo, e os primeiros lampiões constelavam o arrabalde com a sua luz ainda vermelha.
Gabriel deu lume a outros bicos de gás, e resignou-se a aguardar os acontecimentos. A cabeça andava-lhe aí roda e estalava de febre. Entretanto urgia tomar qualquer resolução; aquele homem podia morrer ali, se lhe não ministrassem prontos socorros!... Era preciso descobrir um médico! Que falta fazia o Gaspar naquela ocasião!...
Gabriel havia já resolvido sair, a chamar algum vizinbo, quando ouviu tocar a campainha do jardim.
— Enfim! disse ele, como se esperasse por quem batia.
E, pouco depois, entrava na sala Genoveva, pelo braço de Alfredo.
A viúva do comendador Moscoso vinha sufocada de ansiedade.
— Estimo que chegassem! exclamou Gabriel, assim que os viu; precisava sair imediatamente, e não tinha ânimo de deixar aqui este pobre homem sozinho! Tenham a bondade de ficar com ele... Eu já volto ...
— Não! Não! Faça favor! gritou Alfredo, segurando-lhe o braço. Nós também temos pressa! O patrão espera-me esta noite, e não posso faltar; é um caso grave de moléstia da filha... Por hoje estou farto de mistificações! Arre! Desde as duas da tarde que ando numa dobadoura! A Genoveva sonhou que a filha partia hoje, e quis vir cá; chegamos às três e meia, e encontramos a casa totalmente fechada. Daí fomos imediatamente à de seu padrasto, e ninguém lá nos pôde esclarecer patavina! Já tínhamos perdido as esperanças, quando, ao recolher-nos de volta, encontramos perto do matadouro o cocheiro Jorge, que se compadeceu do estado de ansiedade desta pobre mãe, e disse-lhe: "À senhora devo falar com franqueza! Se quiser encontrar sua filha, tome um bote e vá a bordo do paquete francês Mensageur, que parte hoje para a Europa; D. Ambrosina segue na companhia do Dr. Gabriel. Eles aqui não podiam continuar a viver juntos". Nós como o senhor pode calcular, não esperamos por mais nada e seguimos para o cais Pharoux. Gastamos um bom tempo na viagem, não apareceu um carro e tivemos de tomar um bonde da linha Vila Isabel, que é a pior das linhas de bondes! Quando chegamos à praia, passava das cinco; tomamos um escaler e dissemos ao catraeiro que nos levasse a bordo do tal paquete. O homem obedeceu, mas em viagem declarou-nos talvez não nos deixassem entrar, porque era natural que já tivessem levantado ferro. Foi justamente o que sucedeu! não chegamos a tempo! O mar estava contrário, o escaler jogava mais do que andava... E ao tiro das seis, eu e D. Genoveva, vimos o Mensageur largar para fora da barra. Ela chorava que nem uma criança e, como não havia jantado, principiou a sentir ânsias e vágados. Contudo exigiu de mim que a acompanhasse imediatamente até cá. Não contávamos encontrar ninguém; ao senhor, pelo menos, já o fazíamos em caminho para o estrangeiro.
Gabriel, porém, cortou-lhe a palavra. A notícia da saída do paquete acabava de esmagar-lhe a última esperança.
— Mas, com todos os diabos! gritou ele, segurando a cabeça com ambas as mãos. Parece que há um gênio diabólico a tramar contra todos os meus atos!
Alfredo e Genoveva retraíram-se assustados com os gritos do rapaz.
Este continuava a praguejar, passeando muito agitado em todo o comprimento da sala.
— Eu pensei que o senhor estivesse a par de tudo, disse timidamente a mãe de Ambrosina.
— Não estou a par de cousa alguma, minha senhora! Olhe! leia essa carta de sua filha, ela talvez elucide a situação. Pode também ler a outra dirigida a mim, e afinal esta! acrescentou ele, ajuntando do chão a carta de Laura; esta foi a que pôs aquela mísera criatura no estado em que se acha!
Alfredo e Genoveva armaram os competentes óculos, e dispuseram a proceder à leitura das cartas de Ambrosina.
Jorge soltou um ronco mais forte e deu um estremeção com todo o corpo.
Só então foi que Genoveva reparou para a vigorosa figura do cocheiro estatelada sobre a cama.
— Valha-me Deus! Que têm este homem?!... exclamou ela, espavorida.
— Sua filha poderia responder-lhe muito melhor do que eu... disse Gabriel, possuindo-se agora de tristeza.
— Minha filha?! Mas o que fez ela a este homem?!
— Fez simplesmente todo o mal que lhe podia fazer, roubou-lhe a sua única esperança, a sua única consolação! Esse homem, que a senhora aí vê, era um homem feliz, um honesto cocheiro; vivia do seu trabalho, amassava o seu pão com o suor de todos os dias, não desconfiava de ninguém, porque a ninguém prejudicava, tinha a consciência limpa e o coração alegre. Mas um dia lembrou-se de proteger uma desgraçada que encontrou na rua, perseguida por um doido que a queria matar. A fadiga, o terror e a embriaguez haviam-na prostrado; ele não hesitou, carregou com ela para casa, deu-lhe um talher à mesa e um lugar na cama de sua filha.
Genoveva sentiu vontade de chorar. Alfredo havia já compreendido a situação, e saíra imediatamente em busca de médico.
— Pois bem! continuou Gabriel, sempre possuído de urna grande mágoa; a protegida do cocheiro, logo que se sentiu melhor, pagou todos os desvelos recebidos, seduzindo e arrastando consigo a filha do seu benfeitor..
— O que me faltará saber?! exclamou Genoveva em sobressalto.
Gabriel continuou:
— A vítima de Ambrosina deixou ao pai essa carta, que a senhora tem às mãos... O desgraçado caiu fulminado ao lê-la, e creio que nunca mais se levantará... Sua filha o matou!
— Valha-me Deus! Valha-me Deus! repetia a desventurada mãe, achegando-se cheia de comoção para o corpo de Jorge.
E enquanto lhe desafrontava ela a garganta e o estômago, Gabriel monologava a um canto, com uma voz arrastada e confusa, como se estivesse delirando.
Não havia aquilo de ficar ali! profetizava ele; outras vítimas seriam arrastadas à ignomínia e à morte por aquela malvada! E ela, triunfante e cínica, iria por diante, envenenando com seus lábios todas as bocas que a beijassem, secando no seu peito, insaciável de luxúria, a púbere flor de todos os vinte anos que encontrasse no caminho! Arcanjo maldito, suas asas só para baixo serviriam no vôo, e um dia afinal, quando lhe caísse a máscara formosa, o mesmo inferno haveria de repudiá-la com asco!
Jorge permanecia imóvel. Tinha os olhos muito abertos, fitos e raiados de sangue, a boca torcida, mostrando parte da dentadura, que se destacava do negrume das barbas e da roxidão da cara com um sorriso abominável.
Genoveva ajoelhara-se ao lado da cama, e dizia entredentes a oração dos moribundos. ii dentes a oração dos moribundos.
Ao fundo da alcova, Gabriel derramava sobre os dois um olhar dolorido e vago. Postura e gesto, tudo nele dizia grande desapego à vida e uma completa ausência de si próprio. Apoiava-se a um móvel com o cotovelo, e com a mão correspondente amparava a cabeça em desalinho. Havia mais indiferença do que mágoa na sua graciosa boca mal cerrada. A febre punha-lhe tons cor-de-rosa na palidez das faces, e a sombra transparente dos seus triguenhos cabelos banhavam-lhe a fisionomia num doce eflúvio levedado de ouro.
Quem o visse naquele instante, tomá-lo-ia por um prematuro asceta, cujo espírito apenas roçasse de leve pela terra, distraído e ligeiro repouso dos seus vôos místicos.
No silêncio da alcova palpitava monotonamente o balbuciar das orações de Genoveva.
De repente, Gabriel abriu a chorar numa explosão de soluços, e afastou-se para o jardim com o rosto escondido nas mãos.
Quando Alfredo voltou com o médico, Jorge havia já morrido.
E pouco depois o amante de Ambrosina vagava pelas ruas, sem consciência do tempo nem do lugar.
Como todo aquele que sente uma decepção de amor, comprazia-se ele em deixar levar à toa, arrastado pelos seus próprios desgostos. Enquanto errava pelas ruas, lhe patinavam no espírito, com os chapins em brasa todas as saudosas recordações da sua extinta ventura.
Duas horas. A noite enchia a natureza de mistérios. O arrabalde dormia; polícias dispersos cabeceavam encostados pelas esquinas ou ressonavam à soleira das portas fechadas. Por entre uma nuvem de pó, os varredores da rua desenhavam-se confusamente, como espectros; a noite envelhecia, e as primeiras névoas da madrugada iam galgando as serras, que cercam o Rio de Janeiro num círculo de granito. Uma mulher, vestida de branco e com os cabelos soltos, passeava de um para o outro lado da calçada.
Gabriel reparou que havia entrado na cidade.