A Condessa Vésper/XXII
— Vem sentar-te ao meu lado... Estás hoje tão esquiva...
— Ora!
— É a primeira vez depois da morte de teu pai, que te vejo de claro...
— Larguei hoje o luto.
— Mas parece que não estás de bom humor...
— É!
— O que tens?...
— Nada...
Queres passear? ir ao teatro? ao circo? fazer visitas? Onde queres ir? Fala!
— Não quero cousa alguma. Deixa-me
— Não te mereço esses modos!...
— Não faças caso!
Este diálogo era entre Gabriel e Ambrosina, por uma tarde de fins de novembro, fartos meses depois de unidos. Estavam assentados um defronte do outro. Ela a ver distraidamente um jornal de modas, ele a contemplá-la enamorado.
Gabriel, depois daquelas palavras, levantou-se, fumou um cigarro, e foi apoiar-se nas costas da cadeira da amante. Ambrosina continuou a ver os seus figurinos, indiferentemente.
Estava mais desenvolvida e talvez mais bela, toldava-lhe, porém, a fisionomia um frio ar de desdém e de tédio.
Gabriel tomou-lhe nas mãos a cabeça, e beijou-a nos olhos.
— O que tanto te mortifica, minha flor?... perguntou ele.
— Sei cá! Só sei que estou desiludida...
— Mas, desiludida por quê?
— Aborrecida!
— Já sei! Foi a visita de Gaspar que te irritou os nervos...
— Pelo menos, ela contribuiu muito para isso. Não sei por que, aborrece-me agora aquele sujeito ...
— Não tens razão... Gaspar trata-te bem... As duas únicas vezes em que ele veio cá, dispensou-te todas as atenções; não te disse uma só palavra desagradável, não te fez a mais ligeira recriminação, apesar de o haveres tu privado da minha companhia, que tem para ele grande valor....
— Não sei; ataca-me os nervos aquele ar de hipocrisia. Não posso suportar os seus modos pedantescos de mentor de chapéu alto!
— Tu exageras, coitado! O Gaspar é um excelente homem. Teve na mocidade uma boa dose de desgostos, que o fizeram triste para o resto da vida, mas é um coração de ouro.
— Todavia, nem sequer procura disfarçar a sua antipatia por mim...
— Coitado! ele é lá capaz de antipatizar contigo! Admira-me até dizeres isso, quando gostavas tanto dele durante a tua moléstia...
— Ele nesse tempo tratava-me de outro modo.
É que ainda não se habituou à idéia de que eu o deixasse totalmente, para dedicar-me de corpo e alma a ti, minha querida Ambrosina.
E Gabriel puxou para si a amante, e fê-la assentar-se nos seus joelhos.
— Pois se tens saudades, é voltar, disse ela.
— Deixa-te de tolices! Não vês que não posso mais viver sem ti?...
— O mesmo sucede comigo a teu respeito, e é justamente por isso que aborreço aquele homem. Tenho receio que ele acabe por arrebatar-te de meus braços!
— Que lembrança!
— Enfim, vejamos ainda uma vez; mas se o Médico Misterioso continuar a tratar-me como ultimamente, tu lhe pedirás de minha parte que me dispense a honra de suas visitas...
— Ambrosina!...
— É o que te digo!
— Estás muito nervosa...
— E o que há nisso de estranhar, sabendo-se a vida monótona que levo entre estas quatro paredes?...
— Mas, o que te falta? dize.
— Falta-me tudo, Gabriel! Sinto necessidade de gozar, de esquecer as contrariedades de minha vida!
— Queres viajar?
— Não.
— Então não sei o que te faça!...
E os dois calaram-se. Ambrosina, no fim de algum tempo, levantou-se.
— Vamos dar um baile? disse ela.
— Um baile? repetiu Gabriel, a olhar espantado para a amante.
— Sim, um baile. O que achas nisso de extraordinário?...
— Nada, mas a grande dificuldade está nos convidados. Quais seriam as damas do teu baile?
— Minhas amigas...
— Que amigas?
— As amigas que eu convidasse... Ora, essa!
— Não é tão fácil como julgas... Acho, por conseguinte, infeliz a idéia. Olha, se queres uma festa, dá antes um jantar, porque, nesse caso, farei também de parte alguns convites...
— Mas haverá música?
— Não sei para quê. Haverá, se fizeres gosto nisso...
— O Melo pode encarregar-se de preparar a casa. Ele é tão diligente... lembrou Ambrosina.
— Lá vens tu com o Melo!... Queres que te diga com franqueza? Vou aborrecendo aquele tipo...
— Por quê? coitado?
— Não sei por que, mas vou, cada vez mais lhe tomando birra... As suas visitas já me fatigam.
— Creio que, no fim de contas, muito desconfiado é o que tu és...
— Eu?! Ora, essa! Desconfiado, por que e de quem?!
É um modo de dizer. Vamos formular a lista dos convivas.
E Ambrosina instalou-se na sua mimosa secretária de ébano com incrustações de madrepérola, e dispôs-se a escrever.
— Pronto! disse ela. Vai citando os nomes.
— Gaspar... lembrou Gabriel em primeiro lugar.
— Não! disse Ambrosina; não queremos festa de dia de finados.
— Mas havemos de não convidar o Gaspar?
— Nesse caso, dispenso aí festa.
— Pois risca lá o Gaspar.
Ambrosina beijou a testa de Gabriel, e continuou:
— Mamãe e Seu Alfredo...
Gabriel sacudiu afirmativamente a cabeça.
— O Reguinho e o Melo... acrescentou ela.
Foram nisto, porém, interrompidos pela campainha do corredor.
— Quem será? perguntou Ambrosina.
Era o Médico Misterioso. Precisava falar em particular ao enteado.
Ambrosina franziu o nariz, e deixou-os a sós.
Gaspar, ao tornar de Petrópolis, ficou perplexo com a notícia da nova existência de Gabriel. Correu a vê-lo e, logo à primeira conversa, compreendeu, não só que o pobre rapaz era dominado pela amante, como também que esta possuía em si todos os elementos de uma mulher deveras perigosa.
O resultado desta observação foi ficar o bom Gaspar bastante sobressaltado a respeito de seu filho querido. Ambrosina, que aliás lhe mostrava a princípio tanto respeito e parecia dedicar-lhe sincera estima, não o recebera com boa cara; de sorte que o Médico Misterioso evitou, quanto possível ter de voltar à casa dela.
Estava nestas circunstâncias, quando foi surpreendido pela inesperada visita do Sr. Windsor. O negociante inglês apareceu-lhe desarmado da sua habitual fleuma, e falou-lhe da filha com franqueza. Gabriel representava um papel importante na triste sorte daquela menina.
Gaspar principiou então a acompanhar de perto a moléstia de Eugênia.
Ao ir ter com ela, o estado da rapariga o comoveu. Entretanto, a mísera não lhe queria confessar as causas verdadeiras do seu sofrimento; tinha um como pudor da desgraça. Gaspar, embalde, fazia por merecer-lhe a confiança, ela era sempre a mesma reservada e orgulhosa.
Quando o médico lhe falava de Gabriel, a pobre enferma sorria tristemente e disfarçava as lágrimas.
Impressionava ao vê-la, tão pálida e fraca, estendida sobre as almofadas de uma poltrona; entristecia contemplar o negrume arroxeado dos seus olhos e as sinistras manchas das suas faces descoradas. Estava outra! desaparecia-lhe a voz na garganta, e de vez em quando a tosse lhe sacudia todo o corpo, como para o despertar do marasmo que a prostrava.
Acabada a crise, ela sorria.
O Sr. Windsor andava estonteado, chorava. Ursulina fazia promessas aos santos, e até Emília parecia triste. A casa toda se cobriu de luto e melancolia.
Gaspar persistia em lá ir, e mostrava-se incansável com a enferma.
Foi então que ele procurou Gabriel pela terceira vez.
O enteado, logo que o viu, notou-lhe a grande preocupação que lhe traía nos gestos; abaixou os olhos e corou.
— Como até agora não me apareceste em casa, disse o Médico Misterioso, decidi vir à tua procura, disposto a cumprir com o meu dever, custe o que custar.
— A meu respeito?...
— Sim, meu filho, a teu respeito, e a respeito também de uma pobre menina, a quem estás assassinando, sem consciência do crime que cometes!...
— Assassinando, eu?! Ah! trata-se de Eugênia, não é verdade?
— É justamente dela que se trata; é desse pobre anjo, cujo coração encheste de ilusões, para depois cruelmente o despedaçares.
Gabriel abaixou de novo os olhos, deixando agora pender a cabeça, intimamente aflito.
— Cumpro um dever! continuou Gaspar. Venho buscar-te, e estou resolvido a lançar mão de todos os meios para te carregar comigo. Se não vieres, Eugênia morrerá, e serás tu o seu assassino...
Gabriel não dava uma palavra. Arfava-lhe o peito.
— Além disso, considerou o outro, aonde te poderá conduzir a existência que aqui levas? Principio a temer-lhe as conseqüências. Estás um perfeito ocioso; já não estudas, já não trabalhas!... Nada mais fazes do que amar uma diabólica mulher, que te absorve o espírito e te corrompe o coração!
— Enganas-te, Gaspar!... Ambrosina não é o que supões...
— De sobra conheço a vida para me haver enganado. Jamais conseguirás ser feliz, caminhando deste modo e vivendo no meio da escória que te cerca. Não serão os Regos e os Melos Rosas que te conduzirão ao bom caminho! Estás na idade em que todo o moço decide do seu destino... Se não mudares de conduta, se te não resolveres a trabalhar, se te não fizeres homem de bem, se não tratares enfim de aceitar a responsabilidade da tua vida — virás a ser fatalmente um desgraçado! O fato de haveres nascido rico, não te dispensa dos teus deveres de homem e de cidadão, aumenta ao contrário a tua responsabilidade, porque não tens sequer a desculpa da miséria.
— Acredita, Gaspar, que as cousas mudarão!...
— Receio que não mudem, ou que mudem para pior. O que te afianço é que já representas aos meus olhos um papel bem digno de lástima!... És indecentemente explorado por meia dúzia de cavalheiros de indústria, que se dizem teus amigos. Aquele Melo Rosa é um gatuno!
— Gaspar, peço-te que moderes um pouco a tua exacerbação!...
—Não! não tenciono moderá-la. Disse que cumpria um dever, e é com a consciência dele que procedo neste instante! Não é a própria severidade que me faz esbravear contra aqueles vadios, é o amor que te voto é a compaixão que me inspiras! Tu, meu filho, não tens prática alguma da vida, nem sequer te foi dada pela sorte a inestimável faculdade de precisares trabalhar para viver. Onde queres formar o teu caráter?... Aqui, nesta casa tresandando a desordem e a loucura?! Ao menos, se me aparecesses, para que eu te guiasse com os meus conselhos... mas tu te escondes de mim e tens medo das minhas palavras! Enquanto estás aqui, encerrado no calor voluptuoso deste latíbulo, enquanto passa a vida à fralda de uma mulher, os rapazes de tua idade formam lá fora uma geração forte e trabalhadora; enquanto te amoleces com o perfume dos cabelos de Ambrosina e com o champanha da tua adega, eles, os moços de tua idade invadem o jornal, o livro, a tribuna e a vida pública! Por que não acompanhas a onda do teu tempo? Concordo que ames Ambrosina e que por ela sejas amado, mas isso não é razão para que não cumpras com teus deveres. Esta vida, que aqui levas aos seus pés, sem dignidade e sem consciência, só vos poderá conduzir ao desprezo social; a ti pela libertinagem, a ela pela prostituição!
Gabriel, fulminado pelas últimas palavras do padrasto, sentiu subir-lhe o sangue às faces, e esqueceu-se por um instante do respeito que lhe votava. Veio-lhe à boca uma injúria; mas, antes de a proferir, já Ambrosina, que tudo escutara do outro quarto, havia de improviso se colocado entre os dois, cravando no médico um olhar hostil e exclamando com voz firme:
— Basta, senhor! Foi sempre do meu costume respeitar os cabelos brancos de quem quer que seja, vejo agora, porém, que eles, escondem às vezes uma cabeça leviana e malévola! é bem triste o papel que o senhor escolheu... Introduzir-se na casa alheia para semear a discórdia entre os que vivem felizes e tranqüilos, será tudo, menos um ato digno! Sei que me vai responder que lhe tirei o seu bebê, o seu tutu... Mas, com os diabos! antes o levem por uma vez! Ai o tem! Amo-o não nego, amo-o bastante; mas prefiro privar-me dele a ter de prestar contas de meus atos à sua ama seca! Não estou com a corda no pescoço! ainda tenho uma casa para morar, e não faltará quem me queira!
— Não digas isso, que me afliges! exclamou Gabriel, procurando segurar-lhe as mãos.
— Deixe-me! repontou ela com um arranco. Sempre pensei que você fosse outra espécie de homem; no fim de contas, não passa de um maricas! Acabam de insultar-me nas suas barbas, e você não acha uma palavra para me dasafrontar! Não posso ter confiança em uma pessoa que não reconhece a responsabilidade de seus atos. Agora sou eu quem faz questão de sair desta casa; não posso ficar em lugar, onde estou sujeita a ser insultada covardemente pelo primeiro indivíduo que chega! Hoje foi este, amanhã será outro e, no fim de pouco tempo, serão todos os seus amigos. Nada! prefiro viver com minha mãe, ou talvez com um meu amante, se encontrar um homem que souber ser homem!
— Ambrosina!... suplicou Gabriel.
— Cale-se! não suponha que me enternece com as suas lamúrias... Confesso que lhe tenho amor, mas sou muito capaz de mudar-me hoje mesmo. Já agora, meu amigo, tanto me faz Pedro, como Paulo! Mau foi dar o primeiro passo; afinal, o senhor não é meu marido, e, amante por amante, tanto me faz o segundo como o terceiro!
— Ouviste? observou Gaspar.
— Para que dizes o que não sentes?... insistiu Gabriel, procurando acalmar Ambrosina pela meiguice. Para que te hás de fazer inconveniente e má, quando o não és?... Sabes perfeitamente quais são os laços que me unem ao Gaspar; sabes até onde vai a afeição que ele me vota e...
— Não sei, nem quero saber disso! interrompeu ela. Já disse o que tinha a dizer! Aqui não fico!
E voltando-se para o interior da casa.
— Leonie!
Veio a criada.
— Veja meus objetos e minha roupa; reuna tudo! mudo-me hoje mesmo para a casa de minha mãe!
— Retire-se gritou Gabriel à criada, e acrescentou para Ambrosina: — Tu não irás! Aqui mando eu!
— Manda? A quem? exclamou ela. Qual é aqui o seu escravo? Ora, moço, outro ofício! Se julga que recebo ordens de alguém, está enganado; sou muito senhora deste narizinho, entende! Se me der na cabeça ir já não será você, nem toda a sua geração, que me farão deixa de ir! Era também o que faltava! que, além de tudo, estivesse eu às ordens do Nhonhô... Não! por semelhante preço, prefiro roer o pão duro da casa de minha mãe!
— Mas, aqui quem pretende dar-te ordens? observou Gabriel, chegando-se para ela. Sabes perfeitamente que, da porta pra dentro, és tu a senhora desta casa. Exijo que fiques, não porque te governe, mas porque te amo. Estás encolerizada, bem vejo, e quero-te evitar dares um passo, que sem dúvida lamentarias mais tarde.
— Pois se não sou nesta casa uma figura de papelão, preciso pôr imediatamente este sujeito daqui pra fora!
Gaspar olhou para ela, e sorriu com sarcasmo.
— Vê! exclamou Ambrosina furiosa; escarnece de mim!...
— Ora, Ambrosina! respondeu Gabriel; para que me hás de colocar nesta posição?... Não vês logo que não posso despedir meu padrasto?...
— Deixa-te disso...
— Ou ele ou eu! Escolha!
— Não! insistiu Gabriel; nem ele será despedido nem tu irás... Vocês vão imediatamente fazer as pazes, se são meus amigos...
— Perdão! interveio Gaspar. Eu agora é que só te aceito sem ela! Escolhe entre nós dois!
Gabriel olhou agoniadamente para Ambrosina, depois para o padrasto, e afinal atirou-se a uma cadeira, escondendo o rosto nas mãos.
— Sabem o que mais?! exclamou a rapariga. Não estou para aturá-los!
E dirigiu-se para alcova.
Gabriel precipitou-se sobre ela.
— Meu amor! Escuta!
— Bem! disse Gaspar, tomando o chapéu; nesse caso, sou eu quem se retira...
— Meu amigo! exclamou Gabriel, segurando-lhe o braço.
— Acabemos com isto! gritou Ambrosina. Não me dou bem com estas cenas! Solta-me!
— Os próprios fatos se encarregarão de dar-me a resposta, resumiu Gaspar, conseguindo ganhar a porta da sala. Resolve só por ti o que entenderes! Adeus.
E voltando para Ambrosina:
— Minha senhora, quando de novo precisar de meus serviços médicos, estarei às ordens...
— Obrigada, respondeu ela, com um riso de ironia. E quando Gaspar havia desaparecido, deliberou consigo: "Caro me hás de pagar!"
Depois colou a boca contra a de Gabriel, e exclamou num estremeção de volúpia:
Não me receberás mais este tipo!... não é verdade, meu queridinho?...