Talábriga
Talábriga (em latim: Talabriga) foi uma cidade luso-romana, o principal centro urbano do Baixo Vouga na época imperial romana. Situada no Marnel (Lamas do Vouga, Águeda), junto ao cruzamento da estrada romana com o Vouga, e muito próximo da antiga foz deste rio, a sua história está arqueologicamente documentada desde a Idade do Bronze (segundo milénio a.C.).
Referências históricas
[editar | editar código-fonte]Plínio, o Velho, autor latino do século I, refere Talábriga ao descrever o litoral da Lusitânia:
“ | A Durio Lusitania incipit: Turduli veteres, Pæsuri, flumen Vagia, oppidum Talabrica, oppidum et flumen Aeminium, oppida Conimbrica, Collipo, Eburobritium [...] | ” |
.
Talábriga deveria, pois, situar-se a sul do rio Vouga e a norte da cidade e rio Emínio (actuais cidade de Coimbra e rio Mondego). A Geografia de Ptolomeu, autor do século II, define as coordenadas de Talábriga com base em distâncias viárias a outras cidades, nomeadamente Conímbriga, Emínio e Bracara Augusta. Um roteiro da rede viária de todo o império romano, datado do século III, situa Talábriga junto à estrada que ligava Olisipo a Bracara Augusta, concretamente entre Emínio e Lancóbriga (Fiães, Feira). Uma cosmografia tardiamente compilada em Ravena refere uma Terébrica que poderá corresponder à mesma Talábriga.
Segundo Pompónio Mela, a citada cadeia pliniana de cidades, iniciada no Vouga e que se prolongava até ao Tejo, pertencia aos ópidos dos Túrdulos (Turdolorumque oppida). A criação e delimitação do território (cividade) romano de Talábriga remonta à época de Augusto. Com efeito, em 4-5 d.C., sendo Q. Articuleio Régulo governador da Lusitânia, foram colocados marcos de fronteira em vários territórios. Dois desse marcos foram encontrados na fronteira de Talábriga, um em Ul (Oliveira de Azeméis) e outro em Guardão (Tondela).
O facto de o topónimo Talábriga ser de origem pré-romana leva a crer que este povoado já existiria quando a Lusitânia foi integrada no império romano. Curiosamente, Apiano de Alexandria, autor do século II, descreve um episódio de resistência heroica à invasão romana passado no ópido Talábriga em 138 a.C.. Existia, no entanto, outra povoação chamada Talábriga na região do Lima. Assim, embora a utilização da palavra ópido favoreça a hipótese de o referido episódio se ter passado na Talábriga do Vouga (Plínio apenas refere ópidos a partir do Vouga para sul, estando a região a norte dominada pela cultura castreja), a verdade é que não se pode saber ao certo a qual das cidades homónimas se referia Apiano.
Localização e território
[editar | editar código-fonte]Há registo de propostas de localização do ópido Talábriga desde o século XVI.[1] Ao longo do século XX, foi ganhando cada vez mais força a hipótese da localização de Talábriga no Marnel. O topónimo Marnel designa a área de confluência do pequeno rio Marnel com o importante rio Vouga. Na época romana, a foz do Vouga situava-se a pequena distância deste local, uma vez que a ria de Aveiro se formou a partir da idade média. A estrada romana cruzava os rios Vouga e Marnel neste local. Entre os dois rios situa-se uma elevação de terreno, conhecida como Monte Marnel, que atinge a cota máxima de 83 msnm. É portanto um ponto alto cujo acesso estava protegido por cursos de água a norte, sul e poente. Quer do ponto de vista defensivo, quer do ponto de vista da sua localização relativamente às vias de comunicação (terrestre, fluvial e marítima), o valor do Marnel é incontestável e sem paralelo em qualquer outro local na região de Entre Douro e Mondego. Não surpreende, pois, que aqui se observem também os mais importantes vestígios da época romana até hoje encontrados em toda essa área. A configuração do local e os vestígios existentes ajustam-se à noção de 'povoação fortificada em ponto alto', a que alude o sufixo -briga.
Na idade média, aqui se viria a situar a Cividade Marnel e o Burgo de Vouga, fazendo do local a capital do importante e extenso território medieval conhecido como Terra de Vouga. O Marnel reúne, pois, todas as características necessárias para poder ser considerado uma localização plausível para Talábriga.
Essa hipótese tem vindo, assim, a ser defendida por um número crescente de investigadores,[2][3][4][5] apesar de algumas opiniões contra.[6] Mais recentemente, foram acrescentados alguns argumentos que resultam de uma análise mais fina dos dados disponíveis.[7] Desde logo, o testemunho já citado de Plínio leva a situar Talábriga a sul do rio Vouga, tornando assim pouco plausíveis as localizações propostas a norte do Vouga, como é o caso de São Julião da Branca, Cristelo da Branca e Monte da Senhora do Socorro, entre outras. Por outro lado, a análise das distâncias viárias de Talábriga às cidades vizinhas, segundo as diferentes versões do Itinerário de Antonino e segundo o roteiro viário utilizado por Ptolomeu, mostra que Talábriga se situava a 43 milhas romanas de Cale (Vila Nova de Gaia) e 40 milhas romanas de Emínio (Coimbra), distâncias que se cumprem precisamente no Marnel.[8]
Finalmente, o território de Talábriga, reconstituível através de marcos miliários e marcos de fronteira, coincide em larga medida com a Terra de Vouga, território medieval cuja sede se situava no Marnel. O território romano estendia-se até ao rio Antuã/Ínsua, a norte, à Vimieira (Mealhada), a sul, às serranias, a nascente, e ao oceano, a poente.[9][10] A cividade de Talábriga abrangia assim a totalidade dos seguintes concelhos do distrito de Aveiro:
Tudo indica que Talábriga abrangeria ainda partes mais ou menos significativas dos seguintes concelhos dos distritos de Aveiro, Viseu e Coimbra:
- Estarreja,
- Oliveira de Azeméis,
- Sever do Vouga,
- Oliveira de Frades,
- Vouzela,
- Tondela,
- Mealhada e
- Cantanhede.
O Marnel está aproximadamente no centro deste vasto território, o que não acontece com qualquer das outras hipóteses levantadas na literatura. Este facto igualmente contribui para reforçar a convicção de que Talábriga se situava no Marnel.
Da arqueologia à História
[editar | editar código-fonte]Os vestígios conhecidos encontram-se na sua quase totalidade concentrados no topo do Monte Marnel. A partir da cota dos 60 m, a topografia desenha dois cabeços, a saber, o Cabeço Redondo, de 3.5 ha, com a cota de 83 m, a poente, e o Cabeço da Mina, de 1,5 ha.com a cota de 69 m, a nascente. O nome "Cabeço do Vouga", originalmente dado ao Cabeço Redondo, também designa actualmente todo o monte.
O relevo no Monte Marnel tem uma configuração artificial organizada em três níveis de terraços, os quais terminam em taludes de cerca de quatro metros de altura. Vestígios de muralhas apareceram a sul e ocidente. Os núcleos do Redondo e da Mina eram, ainda no século XVI, conhecidos por Alcáçova Grande e Alcáçova Pequena.
Em 1941, uma equipa coordenada por Rocha Madail e patrocinada por J. Sousa Baptista realizou escavações no Cabeço da Mina, colocando a descoberto uma plataforma artificial quadrada de 40 metros de lado sobre a qual se construíram os primeiros edifícios do período romano. O objectivo desta plataforma foi alargar e nivelar a área de implantação de construções, num local cujo relevo era irregular e rochoso. As investigações da década de 1940 viriam a justificar a classificação da chamada "Estação arqueológica do Cabeço do Vouga" como Imóvel de Interesse Público[11].
As escavações realizadas pelo Gabinete de Arqueologia da Câmara Municipal de Águeda desde 1996 no Cabeço da Mina permitem caracterizar um pouco melhor a ocupação humana do local.[12] Foram encontrados vestígios da presença humana desde o Neolítico/Calcolítico, passando pela Idade do Bronze, Idade do Ferro, Romanização, até à Idade Média, embora a maior quantidade de materiais tenha origem na Idade do Ferro e no período romano. Foi detectada cerâmica doméstica comum, sigillata, ânforas, mós, pesos de tear, pesos de rede, elementos de adorno de vidro, bronze e ouro, moedas, etc.
No que diz respeito a construções, detectaram-se edifícios circulares e sub-rectangulares da Idade do Ferro com a tipologia castreja comum a norte do Mondego. A plataforma artificial surge no início do período romano, por volta do século I a.C./I d.C. Posteriormente (segundo o registo arqueológico, entre os séculos II e IV), foi instalado um pequeno criptoportico (galeria subterrânea) no interior da plataforma, a poente. O suporte de terras é feito através de uma parede duplamente pilastrada que, em parte, ainda subsiste. A parede exterior da plataforma foi contra-fortada através de uma sequência de construções semicirculares, algumas ainda razoavelmente conservadas. O criptopórtico, além de uma eventual função de estabilização da plataforma artificial, serviria também de depósito. É nesta área do criptopórtico que se encontra a mina (aliás cisterna) que dá o nome ao cabeço. Tudo indica que, na sequência da renovação da plataforma, terá sido construído um templo por cima do criptóportico, facto sugerido pelos vestígios encontrados, com destaque para alguns pedaços de uma estátua de grandes dimensões (a ponta de um pé e dois pedaços de uma perna) descobertos em 2004.
Não se conhece a verdadeira extensão urbana de Talábriga. O Cabeço Redondo está ainda por estudar, como o estão também as encostas de todo o Monte Marnel. Já claramente nas terras baixas em volta do monte encontram-se outros pontos de interesse. É o caso da área ocupada pelo burgo medieval de Vouga (hoje conhecido como Lamas do Vouga). É ainda o caso da área ocupada pelo mosteiro do Marnel, ou de Santa Maria de Lamas, referido em documentos anteriores à nacionalidade, já na margem sul do rio Marnel. A designação "Estação Arqueológica de Cabeço do Vouga" é, pois, redutora, visto que a área urbana historicamente relevante é muito mais extensa.
As escavações não revelaram, até agora, quaisquer vestígios das guerras sangrentas da conquista romana. Assim, continuamos sem saber ao certo em qual das Talábrigas (a do Vouga ou a do Lima) se passou o episódio de resistência descrito por Apiano. No entanto, os vestígios até agora encontrados parecem constituir já confirmação arqueológica suficientemente eloquente da localização da Talábriga pliniana, capital do vasto território acima descrito, no Marnel. Essa hipótese é actualmente aceite pela maior parte dos autores.[13]
Lamentavelmente, as escavações foram interrompidas em 2010, estando a estação arqueológica votada ao abandono [14].
Bibliografia
[editar | editar código-fonte]- ALARCÃO, J. (1988) O Domínio Romano em Portugal, Publicações Europa-América.
- ALARCÃO, J. (1990) «O Domínio Romano. Capítulo II: O Reordenamento Territorial», Nova História de Portugal, Joel Serrão e A.H. de Oliveira Marques (dir.), Editorial Presença, vol. I, p. 345-382.
- ALARCÃO, J. (2004) «Notas de Arqueologia, Epigrafia e Toponímia – I», Revista Portuguesa de Arqueologia, vol. 7 (1), p. 317-342.
- AMORIM GIRÃO, A. (1941) Geografia de Portugal, Portucalense Editora, Porto.
- FABIÃO, C. (1992) «O Passado Proto-Histórico e Romano», História de Portugal, José Mattoso (dir.), p. 77-299.
- MANTAS, V.G.S. (1996) A Rede Viária Romana na Faixa Atlântica entre Lisboa e Braga, dissertação de doutoramento, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
- MARQUES, Diana, & Ricardo COSTEIRA DA SILVA (2023) Cerâmica de importação em Talabriga (Cabeço do Vouga, Águeda), J.M.Arnaud,C.Neves, A. Martins (coord.), Arqueologia em Portugal: 2023 - Estado da Questão, p. 859-872
- OSLAND, D.K. (2006) The Early Roman Cities of Lusitania, British Archaeological Reports Séries, 1519, Archeopress, Oxford.
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- SEABRA LOPES, L. (1995) «Talábriga: Situação e Limites Aproximados», Portvgalia, Nova série, vol. XVI, Instituto de Arqueologia, Porto,p. 331-343.
- Seabra Lopes, L. (1996) «Talábriga e as Origens da Terra de Vouga», Beira Alta, vol. LV, 1-2, Assembleia Distrital de Viseu, pp. 169–187.
- SEABRA LOPES, L. (1997a) «O Problema da Localização de Talábriga», Munda, nº 34, Coimbra, p. 57-60.
- SEABRA LOPES, L. (1997b) «Itinerários da Estrada Olisipo-Brácara: Contributo para o Estudo da Hispânia de Ptolomeu», O Arqueólogo Português, série IV, vol. 13/15, p. 313-346.
- SEABRA LOPES, L. (2000a) «Tentativa de Sistematização da Historiografia de Talábriga», Al-madan, IIª série, nº 9, Centro de Arqueologia de Almada, p. 28-38.
- SEABRA LOPES, L. (2000b) «A Estrada Emínio-Talábriga-Cale: Relações com a Geografia e o Povoamento de entre Douro e Mondego», Conimbriga, vol. 39, Instituto de Arqueologia da Universidade de Coimbra, p. 191-258.
- SILVA, A.M.P. Silva (1999) «Aspectos Territoriais da Ocupação Castreja na Região do Entre Douro e Vouga», Revista de Guimarães, volume especial, I, Guimarães, p. 403-429.
- SILVA, F.P. (2005) «Memórias de pedra e barro desde dois milénios antes de Cristo: Estação Arqueológica do Cabeço do Vouga», Soberania do Povo, 22 de Abril de 2005.
- TRAVASSOS GOMES (1934-35) «As civitates dos séculos 10º e 11º», Correio do Vouga, 14 de Julho de 1934 a 16 de Março de 1935.
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Referências
- ↑ Seabra Lopes, 2000
- ↑ Travassos Gomes, 1934-35
- ↑ Amorim Girão, 1941
- ↑ Alarcão, 1988 e 1990
- ↑ Fabião, 1992
- ↑ Mantas, 1996
- ↑ Seabra Lopes, 1995, 1996, 1997ab
- ↑ Seabra Lopes, 2000b
- ↑ Seabra Lopes, 1995 e 1996
- ↑ Alarcão, 2004
- ↑ Decreto 36383, Diário do Governo nº 147/1947, de 28/06, c/ rectificação no Diário do Governo nº 170/1947, de 25/07.
- ↑ Silva, 2005
- ↑ Silva, 1999; Seabra Lopes, 2000; Alarcão, 2004; Osland, 2006; Marques & Costeira da Silva, 2023.
- ↑ "Ruínas de Talabriga: um monumento histórico da maior importância regional votado ao abandono?", por Luís Seabra Lopes, Soberania do Povo, 2014/11/19