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Aquele era o pior cenário que poderia ter imaginado.
O desaparecimento de seus filhos e de seus sobrinhos não parecia ter sido o suficiente. Irem parar naquele lugar estranho, divididos em times, perseguidos por monstros, sobrevivendo situações extremamente perigosas, separados pela competição, pela desconfiança, pela ganância, pelo ódio. Distante de seus amigos, de sua família. De seu marido.
A cor do céu era vermelho como todo o sangue que havia sido derramado naquelas terras. O seu e o dos outros.
Tudo aquilo parecia ter sido tão inútil. Qual era o verdadeiro motivo deles estarem ali? Sofrer? Serem feitos de mascote para aquela coisa que os chamavam de “pecadores” se divertir? Onde estavam os ovos? Onde estavam os seus filhos? Onde estava Richarlyson?
Cellbit tinha muitas perguntas e nenhuma resposta. A única coisa que tinha certeza é que seus companheiros estariam salvos naquele navio que estava partindo e que Roier estava entre eles.
Em meio a todo aquele sofrimento de semanas, a tanta dor, a tanta angústia, a tantas mortes, Cellbit sorriu por saber que seu marido ficaria bem. Sorriu por saber que ele continuaria vivendo, por saber que ele ficaria feliz sem ter o brasileiro ao seu lado. Por saber que ele, ao menos, poderia ter a vida que sempre mereceu.
Uma lágrima solitária desceu pela sua bochecha suja de poeira e sangue. Apesar de tudo aquilo, ficava triste de não poder estar lá para acompanhá-lo.
O navio estava ficando embaçado devido as lágrimas encherem os seus olhos. Um suspiro trêmulo passou pelos seus lábios. Pegou o comunicador do bolso, as mãos tremendo e os soluços presos em sua garganta, tornando a tarefa de respirar mais difícil do que nunca. Tinha ao menos o direito de deixar as suas últimas palavras, não é? Apenas para fazer Roier lembrar-se dele mais um pouco antes de prosseguir para uma vida melhor. Uma vida melhor sem ele. Poderia se dar esse luxo, não?
Escrever aquelas palavras nunca foi tão difícil assim. Já havia as dito antes, mas, naquele momento, seu coração se partia em milhões de pedacinhos.
“Adios guapito”
Aquilo era tão injusto. Tão, tão injusto.
Eles não deveriam acabar assim.
A resposta veio em segundos enquanto ainda digitava o restante da sua mensagem.
“No pendejo”
“Te amo”
“Donde estás?”
Antes que perdesse a coragem, ele guardou o comunicador com uma dor no peito, dando um sorriso triste para o navio ao longe enquanto mais lágrimas desciam pelo seu rosto.
Silencioso. O lugar nunca esteve tão quieto assim em todos os dias que eles haviam ficado ali. A única coisa que conseguia ouvir eram as batidas rápidas de seu coração partido. O som da bomba explodindo veio alguns segundos depois. Mas nem aquela arma mortal era alta o suficiente comparada a voz que repetia-se em sua mente, o apelido carinhoso, que o fazia derreter, agora estava o fazendo chorar.
– Gatinho?
Quando percebeu que o som estava mais perto de si do que imaginava, ele abriu os olhos lentamente, com uma calmaria que nunca se deu o luxo de ter antes. Ao olhar para cima, viu o belo rosto de seu marido o encarando, os olhos castanhos escuros preenchendo toda a sua mente enquanto as pontas de sua faixa azul anil dançavam com o vento leve que os banhava.
Ah, é verdade. Aquele pesadelo já havia se passado. Seu coração poderia ficar tranquilo.
– Guapito.
O sorriso no rosto do mexicano fez um sentimento gostoso passar pelo seu peito, uma das mãos de seu marido passeando entre os seus cabelos ajudava aquela sensação a crescer mais ainda. Reparou que havia dormido no chão novamente, a grama acariciando as partes expostas de sua pele enquanto a cabeça estava apoiada no colo do moreno. Há quantas horas será que eles estavam ali? Depois dos primeiros anos, já havia perdido a noção do tempo. Ainda era algo que precisava se acostumar.
– Sonho ruim?
– Lembranças… – ele disse, aproveitando o cafuné que recebia em seus cabelos. Nunca se cansaria daquele ato tão carinhoso que o moreno fazia questão de dá-lo. – Daquele dia do purgatório.
Roier não precisou perguntar para saber qual dia ele estava falando. A expressão em seu rosto endureceu um pouco, tão imperceptível que apenas Cellbit poderia reparar naquele detalhe, já que conhecia o homem com a palma de sua mão.
– Eu também me lembro disso às vezes. – ele suspirou, olhando para cima, observando o céu claro. – Já faz tanto tempo…
Tirou os olhos do mexicano para poder olhar para a imensidão azul. Aquele lugar era tão tranquilo, nem conseguiu acreditar quando foi mandado para lá, há alguns anos. Ainda sentia que estava preso em um sonho, mas o toque quente de seu marido o fazia lembrar-se de que estava acordado.
– Sinto muito por aquilo–
– Pendejo. – Roier deu um puxão leve em seus cabelos, o sorriso em seu rosto fazendo o seu coração se acelerar. – Nós já tivemos essa conversa no mínimo umas quinhentas vezes.
– Ainda assim… – ele suspirou, olhando para o lado. Mais ao longe, havia um campo florido os fazendo companhia. Gostava de andar por ali com a sua família. – Não foi certo eu fazer isso com você.
– Você estava passando por um momento difícil. – Roier o respondeu, voltando a fazer carinho em seus cabelos. Aquela sensação ruim dissipou-se em seu peito rapidamente conforme sentia os dedos do rapaz passeando entre as suas madeixas. – Lembra? Eu sei bem como é.
Expirou profundamente, acomodando-se no toque suave de seu esposo. Aqueles anos foram complicados. Ficar preso naquela ilha junto com Baghera, pensando que Richarlyson estava morto, para, quando foi resgatado por Philza, descobrir uma parte da verdade sobre o paradeiro dos ovos e perceber depois de meses que o seu marido não era o “mesmo”... Teve uma vida muito distante do que poderia ser considerado normal, e já havia aceitado isso há muito tempo atrás.
Quando juntou as peças e se deu conta de que Roier havia sido substituído, eles não tiveram tempo o suficiente para voltar ao normal. Enquanto ele e seus amigos invadiram a Federação para resgatar o mexicano e investigar sabe-se lá mais o que havia entre aquelas paredes brancas de quartzo, o tal Doied agiu mais rápido. Quem iria pensar que a bomba atômica do Max não seria a única que atingiria uma ilha? O irmão gêmeo do Roier não foi muito original nesse quesito.
Lembrava-se bem daquele dia. Assim que conseguiram sair da federação, todos eles juntaram as coisas para fugirem o mais rápido possível, mesmo sem um destino definido ou sem ao menos ter a certeza de que eles conseguiriam executar aquele plano com sucesso (já haviam falhado tantas vezes antes, quem garantiria que agora daria certo?). Porém, o brilho tão característico que Cellbit já presenciou uma vez o fez ter a certeza de que nada poderia ser feito. Naquele momento, ele só olhou para o marido e para as crianças, e os abraçou o mais rápido possível.
– Tivemos tão pouco tempo juntos, meu amor… – o brasileiro sussurrou em seu ouvido em meio às lágrimas, sentindo o aperto forte do seu esposo e dos seus filhos naquele abraço tão triste e reconfortante.
– Te buscaré en el infierno, gatinho… – Roier o respondeu, e Cellbit sabia que havia um sorriso bonito em seu rosto manchado pelas lágrimas.
Não lembrou-se de muita coisa depois disso, só sabia que havia acordado num lugar muito quente e sufocante. A figura diabólica e vermelha à sua frente sorria para ele, dizendo-lhe algo sobre “pagar pelos seus pecados”, igual aquela figura da Ilha dos Ovos. Quem diria que passaria de fato pelo verdadeiro inferno.
Os primeiros anos foram solitários. Aparentemente passaria um bom tempo ali para pagar por todos os assassinatos que já havia feito. Achava justo, não iria negar, mas sentia saudades da sua família. Perguntava-se como será que os outros estavam todos os dias da sua (pós) vida, e tinha um certo conforto por saber que eles deveriam estar bem lá em cima.
Alguns anos depois, ouviu uma voz que pensou que demoraria muito mais tempo para ouvi-la. Quando virou-se para saber de onde ela vinha, simplesmente percebeu que Roier, o seu marido, o amor de toda a sua vida, estava ali, correndo até ele entre as chamas e o ar quente do inferno. Ele parecia um anjo, mesmo que caído. Para Cellbit, isso não importava no momento.
O calor do abraço do seu esposo era extremamente superior ao clima do submundo, seu perfume ultrapassando o cheiro de enxofre e os seus lábios sendo a única coisa que poderia desejar para Deus naquele momento. Nunca pensou que poderia ficar tão feliz no inferno. A vida (bom, a pós-vida) dava uma dessas.
– Eu te disse… – o moreno disse, fungando enquanto seus soluços preenchiam os seus ouvidos e as suas lágrimas molhavam o seu rosto. – Eu te disse que eu te buscaria no inferno, culero…
Os anos pareceram passar bem mais rápido com Roier ao seu lado. É claro que ainda era torturante, angustiante, abominável, terrível, mas saber que seu marido estava com ele tornava tudo menos pior. Roier tinha aquele efeito sobre si. Nem o próprio inferno era tão ruim assim com ele ao seu lado.
Demorou vários anos para seus pecados serem perdoados. Os do mexicano foram mais rápidos; Cellbit havia matado muita gente, não tinha como sair dali em menos de 100 anos. Mas, mesmo quando Roier já pode seguir para o paraíso, ele permaneceu ao seu lado.
– Eu não vou ficar longe de você de novo. – era o que ele sempre lhe dizia.
E ele realmente não ficou longe de si. Após mais algumas décadas de sofrimento, os dois tiveram o passe para um lugar mais arejado, mais claro e menos fedorento, algo que ambos esperaram por muito tempo.
Reencontrar os seus filhos no céu foi uma das melhores sensações que pôde ter em toda a sua pós-vida.
Bobby reclamou por décadas sobre o quanto os dois demoraram. Pelo menos Richarlyson e Pepito estavam lá para o fazer companhia, assim como os ovos e algumas outras pessoas que subiram mais cedo do que eles. Sentia-se triste por ver que todos os seus amigos e entes queridos não haviam sobrevivido, mas ficava feliz por saber que eles iriam encontrar a paz na eternidade. Foi uma vida tão sofrida, eles mereciam isso mais do que tudo.
Alguns decidiram reencarnar após alguns anos. Outros decidiram ficar por mais um tempo. Cellbit e Roier não pretendiam se afastar um do outro tão rápido. Queriam aproveitar o tempo perdido da Terra no paraíso.
– Guapito… – o loiro o chamou, vendo as orbes castanhas o mirarem mais uma vez. Nunca se cansaria disso, mesmo após tantas décadas. – Você pretende reencarnar um dia?
– No sé… – ele falou, a mão livre indo para a bochecha do brasileiro. – Talvez possamos esperar mais uns 500 anos.
Os dois riram, voltando a observar o céu azul e a paisagem à sua frente. O campo estava cheio de amarantos. O completo paraíso.
– Mas sabe… – Roier voltou a encará-lo novamente, a mão fazendo um carinho em sua bochecha. – Se reencarnarmos, eu vou procurar por você. Iré por ti.
Cellbit sorriu. Pegou a mão do marido, a aliança de ouro ainda reluzente mesmo após tantos anos, e a beijou, o encarando com os olhos mais apaixonados que poderia ter. Olhos estes que eram direcionados apenas para Roier. Por toda a sua vida e eternidade.
– E eu morrerei sorrindo ao seu lado mais uma vez.
Uma brisa leve voou pelo campo de amarantos, as pétalas cor de rosa voando pelos campos silenciosos, demonstrando a tranquilidade que apenas um amor eterno poderia ter.