Chapter Text
A Imperatriz Sang Jiu remoeu aquela informação por muitos dias. Ao longo de toda a sua existência viu o amor puro que sentia por Ming Ye se transformar em mágoa, rancor e ódio que acabou se estendendo também aos celestiais. Por Ming Ye havia sacrificado a si mesma e sem querer também ao seu povo. As dez mil vidas do Rio Mo foram esmagadas como insetos pela arrogante e malévola Santa Tian Huan em retaliação ao único pecado da inocente Sang Jiu: ousar se apaixonar pelo Prodígio dos Céus.
Quando jovem, seu pai — o Rei Molusco — a incentivava a cultivar à imortalidade para aproveitar o seu talento natural em purificar as águas, pois aumentaria suas habilidades e prolongaria sua vida e saúde. Mas Sang Jiu nasceu como a princesa mimada de um reino pequeno e humilde cujos domínios compreendiam um simples rio. Sua disposição era lenta e sua alma era ingênua. Ela via o homem bonito numa armadura brilhante lutando contra os demônios nos céus e acreditava que ele era um herói! Ela o admirava por todo o esforço empenhando em salvar o mundo das garras do Deus Diabo e até almejava se juntar ao exército celestial apenas para estar ao lado dele.
Porém, ZhanShen Ming Ye representava a justiça ao mesmo tempo em que seu exército afligia os mais necessitados. Enquanto sua lâmina poderosa trespassava demônios por dias a fio no campo de batalha, o povo que vivia abaixo do reino de cultivo superior de Shangqing não passava de moscas indesejáveis aos seus olhos.
ZhanShen Ming Ye não era um herói, era um projeto de poder. Um homem que emergiu dentre os pequenos, dentro os mais fracos e desvalidos, para ser o modelo de um ideal inalcançável. Um oprimido escolhido a dedo por um monstro de vestes brancas e puras para se tornar um opressor. Uma figura inspiradora para quem todos olhavam e diziam “sim, eu também posso!”, e então passavam a vida inteira à sua mercê sem realmente poder nada. E Sang Jiu ousou olhar para esse homem com a pureza dos olhos de seu coração e dizer “sim, eu o desejo e o quero!”, e tudo o que logrou foi tragédia e infelicidade.
E então o tempo passou, ela deu a volta por cima e encontrou a felicidade verdadeira. Porém, ódio por aquele homem, agora seu ex-marido, continuava aceso como brasa. E era recíproco. Ming Ye também a odiava, no entanto, de um jeito obcecado e verdadeiramente insano, passando por cima de qualquer moral apenas para tê-la novamente em seu jugo. Sang Jiu não poderia odiá-lo menos! Contudo, o melhor que poderia fazer por sua própria sanidade era manter distância desse louco e viver feliz no Abismo Estéril sob a proteção do Deus Diabo onde Ming Ye jamais poderia incomodá-la.
Ainda assim esse homem cruel e rancoroso, mesmo moribundo e corroído pela doença, encontrou forças para ameaça-la. Reavivou a antiga sentença de morte, destruiu o próprio reino e no fim foi derrotado e recolhido à prisão no reino do demônio. Chu Mo deixou que ela fizesse dele o seu brinquedinho favorito em quem poderia descarregar toda a raiva. Esse homem a divertiu por mais de trezentos anos sendo torturado e humilhado constantemente, impossibilitado de tirar a própria vida sem permissão. Querendo ou não ele pertencia à ela agora.
Sang Jiu entrou novamente na masmorra da Torre Invertida. O prisioneiro jazia encolhido num canto abraçado aos joelhos tentando não sucumbir ao frio enquanto dormia. Ming Ye havia perdido tanto peso e sobrevivia tão maltratado que sequer era uma sombra do belo homem que já foi. Seu rosto estava oculto pelos cabelos soltos e revoltos, sujos e infestados de pragas.
Ela arremessou uma pequena pedra com força.
— Acorda!
A testa sangrou e ele apenas abriu os olhos escuros como a noite. Ela via o medo e a desolação naquelas irises, mas também um resquício de esperança.
“Reaja... Diga alguma coisa, seu verme inútil. Vomite alguma asneira. Vamos logo, Ming Ye!”
Ele permaneceu quieto. Sang Jiu cerrou os punhos e então riu em seu coração. Acenou para os guardas e eles se curvaram a ela imediatamente.
— Lavem o prisioneiro com água limpa e sabão. — conjurou um conjunto completo de roupas simples e empurrou no peito de um dos guardas — E vistam-no!
Momentos mais tarde Ming Ye foi levado até o pavilhão da Imperatriz. Ela ordenou que os grilhões fossem retirados e ele, aquela pilha de ossos assustada, sentia que talvez a morte estava vindo. Seus olhos lacrimejavam sem controle e se ajoelhou com o rosto no chão agradecendo pela misericórdia. Sang Jiu tinha muito a dizer, mas as palavras travavam em sua garganta. Ela poderia narrar infinitamente o quanto o odiava e se regozijava em seu sofrimento, mas em seu peito jazia apenas uma pequena dor.
Olhando a figura patética manchando seu salão privado com o sangue de sua testa, Sang Jiu respirou fundo e não quis mais elaborar. Com apenas um mover de seus grandes olhos dourados os guardas ergueram Ming Ye do chão e despiram a parte superior das roupas. Ele tinha tantas cicatrizes horrendas que a ferida que Sang Jiu procurava agora era difícil de encontrar. Com a energia original da água a Imperatriz conferiu que não havia mais nenhum resquício da mácula do Deus Diabo. O trovão do julgamento de trezentos anos atrás não matou Ming Ye, mas extraiu todo o qi turvo selando a ferida. Com um simples mover de sobrancelhas os guardas o soltaram e os deixaram a sós. Ming Ye ajeitou as vestes e manteve a cabeça baixa. A coleira que o impedia de tirar a própria vida se tornou um fio invisível que se fundiu à sua carne.
— Vá embora.
Ming Ye olhou para os lados e não viu ninguém para leva-lo de volta a cela. Os domínios do Deus Diabo ainda eram desconhecidos para ele. Exibiu os punhos humildemente pedindo pelos grilhões, mas viu apenas o sorriso aborrecido de Sang Jiu. A Imperatriz passou por ele como um relâmpago e o puxou pela gola. No instante seguinte estavam nos limites do Abismo Estéril diante de um grande deserto. Ela o jogou na areia e lhe deu uma garrafa d’água.
— Você é o pior brinquedo que já tive. Estou farta da sua cara. — apontou para o leste — Se caminhar por um dia encontrará uma pequena vila de mortais coletores de frutas. Agora suma da minha frente.
Sang Jiu se virou pronta para voar para o Abismo, mas sentiu um toque suave em suas vestes. Ming Ye segurava a ponta do véu negro bordado de conchas e seus olhos umedeceram pensando na época em que uma jovem e bela espírito de molusco sorria timidamente querendo sua atenção, sempre vestida com a delicada seda clara de fio de sereia. A imperatriz permanecia de costas sem lhe dar um mísero olhar. Ele agora erguia o rosto e vislumbrava aqueles cabelos longos entremeados de mechas vermelhas, ornamentados de arranjos de metais e pedras preciosas.
— Sang Jiu? — murmurou.
Ela negou movendo a cabeça devagar e desapareceu sem olhar para trás.
“Não, Ming Ye. Eu não sou mais a sua Sang Jiu... há muito tempo.”
Ming Ye tinha dois fios de lágrimas atravessando as bochechas que gota a gota molhavam o rico tecido preto firmemente preso em suas mãos. Após um quarto de hora ele engoliu o choro, amarrou o véu no cinto e partiu.
— Sua Majestade, apenas dê a ordem!
O Deus Diabo manteve os olhos fitos no horizonte assistindo a frágil silhueta caminhando no mar de areia. Sua fiel general cerrava os punhos e alternava o olhar nervosamente entre seu senhor e o alvo.
— Sua Majestade, basta uma palavra, um piscar de olhos, qualquer coisa! Não vai sobrar nem o pó dos ossos desse dragão, eu prometo!
— Si Ying, deixe-o ir.
— Mas-
— A decisão da Imperatriz é a minha decisão. Obedeça.
Si Ying cumprimentou o senhor demoníaco, mas ainda se mantinha tensa. O ódio que a grande demônio da seca tinha pelos celestiais estava gravado em seus ossos e seu sangue fervia com a menor possibilidade de matar qualquer um deles. E embora não ousasse questionar a decisão do Deus Diabo, seu grande senhor e benfeitor que a salvou de ser violentada, torturada e morta no acampamento dos soldados de Shangqing, assim como fora sua amada irmã, estava visivelmente frustrada.
— Ele não é Tian Hao.
— Sim, Majestade!
A general se retirou conformada e o Diabo cruzou os braços acariciando o queixo com sua manopla de garras afiadas.
*****
Duzentos anos depois...
Os Quatro Continentes e Três Reinos desfrutam de uma era tranquila e próspera. A queda do Reino de Cultivo Superior de Shangqing alarmou os povos e inflamou opiniões quanto ao que viria a ser o domínio demoníaco sobre o mundo, mas o Deus Diabo, o regente supremo em exercício, não estava disposto a cuidar de outros negócios que não fossem relacionados aos demônios.
Dessa forma foi estabelecido um acordo de boa convivência e risco assumido entre mortais, imortais e demônios. Todos os lados tentariam ao máximo se respeitar e não se atacar, a não ser que fosse inevitável. Muitos demônios se alimentavam de energia ou carne humana, por exemplo, e o Deus Diabo não queria limitar suas naturezas. Ele era um demônio e não um santo. No mais, o mundo era vasto e havia lugar ao sol para todos, principalmente quando se queria uma sombra. Ou seja, de qualquer forma agora era cada um por si! Os mais fracos que se organizassem melhor e aprendessem a negociar e a se defender. E os mais fortes que administrassem a sua força para manter o equilíbrio e a ordem.
A política era cansativa, mas infelizmente era muito necessária. Naquele dia, porém, havia festa no domínio dos demônios e nada nos Três Reinos aborreceria o Deus Diabo. O príncipe que cultivava há quinhentos anos no magma das profundezas finalmente saiu da reclusão e estava pronto para conhecer seus pais. Sang Jiu e Chu Mo dividiam o suntuoso trono do salão do palácio demoníaco e aguardavam sua entrada. Generais, ministros e demônios notórios de grande poder enchiam o ambiente quando a nuvem negra flamejante passou arrancando a porta gigante e quebrando boa parte das densas paredes de rocha provocando gritos de alvoroço, desespero e morte. O Deus Diabo ficou muito satisfeito e cutucou a Imperatriz gentilmente.
— Nosso filho é realmente adorável! Aposto que parece mais com você.
Sang Jiu o beliscou em reprimenda, mas sorriu emocionada em finalmente poder ver o seu tão esperado bebê.
O cheiro de sangue e vísceras perfumava o grande salão e os que não puderam se manter vivos agora contemplavam a massa negra tomando a forma de um adorável garotinho de no máximo dez anos. Ele estava nu e tinha um caminhar orgulhoso, elegante, um olhar altivo e uma aura opressora impressionante. Ele tinha brincos de pérolas vermelhas nas orelhas e uma pulseira do mesmo tipo com orações inscritas nas contas. Seus cabelos eram longos, muito lisos, pretos como tinta de polvo e jaziam soltos. Seus olhos eram como duas flores de pêssego de cor alaranjada e todo o seu rosto era muito gracioso e claro.
A criança reverenciou os pais se apoiando sobre um joelho e juntando os punhos de cabeça baixa.
— Reconheço e saúdo Sua Majestade, o Deus Diabo e a Imperatriz Demoníaca Sang Jiu, meus pais!
A voz infantil doce e encantadora mexeu ainda mais com o coração de Sang Jiu que abriu um lindo sorriso emocionado. Chu Mo a tomou pelas mãos e ambos levantaram para ver melhor a criança que os reverenciava. O Diabo acenou para que as servas trouxessem as vestes reais para cobrir a nudez de seu herdeiro, mas subitamente o som do metal rasgando e perfurando a carne assustou a todos, até mesmo ele o grande soberano dos demônios. Diante daquela cena o coração de Sang Jiu parecia que iria pular pela boca. A criança que agora jazia revestida com uma belíssima armadura de metal escuro abriu um sorriso sapeca e seus lindos olhos se curvaram como meias-luas aliviando a todos.
— Não se preocupe, mamãe. Veja, não dói! — esticou o braço retraindo o metal para dentro da carne e revestindo por fora novamente — É a minha concha! Ela é fundida aos meus ossos e eu posso trazê-la para fora. É muito legal!
— Oh... — Sang Jiu não conteve um suspiro de alívio.
— E eu também posso fazer isso!
A criança mostrou as palmas e de cada um de seus dedos surgiam dezenas de pérolas vermelhas incendiadas que cresciam em circunferência quase até quase o tamanho de sua cabeça formando uma linda roda de fogos ardentes, tal qual uma divindade. Sang Jiu e Chu Mo sabiam que mesmo a menor daquelas bolinhas era uma arma de potencial assombroso. A criança recolheu sua bela demonstração e voltou ao normal aceitando então as vestes infantis vermelhas com bordados de ouro e pedrarias que sua mãe havia feito com as próprias mãos.
Alguns demônios jaziam admirados e muitos estavam horrorizados com tamanho poder. Sem contar o fato de que nunca antes uma criança havia nascido com uma armadura natural. Aquele definitivamente não era um molusco ordinário como muitos apostavam que seria. Sang Jiu estava orgulhosa de seu pequeno filho que já chegou calando as expectativas ruins que colocaram sobre ele. Chu Mo, no entanto, estava mais do que admirado com aquela criança. Seu olhar imergiu nela como num transe e Sang Jiu notou um discreto tremor em suas mãos. A criança charmosa olhava para um e outro como se esperasse reação e então encarou o Deus Diabo, seu pai. Inclinou o rostinho e cruzou os braços acariciando o queixo com suas delicadas mãozinhas.
— Papai? Ah!
A criança rapidamente lembrou do estrago que fez ao chegar e se virou para os escombros erguendo um dedo e restaurando as portas e as pedras ao seu devido lugar. O corte das pedras foi selado perfeitamente com calor como se nunca houvessem se partido. Seu huadian brilhou e as dezenas de cadáveres esmagados foram reduzidas a nada e a pequena criança demoníaca absorveu as almas dos mortos. Agora que tudo estava limpo o menino olhava contente para seu pai em busca de aprovação.
— Isso é cultivo fantasma? — alguém cochichou.
— Aparentemente sim... um demônio cultivador de fantasmas. — disse outro.
Os olhos de Chu Mo encheram de brilho e umidade e um sorriso absolutamente espontâneo derrubou uma lágrima furtiva por seu rosto enquanto um raminho novo de amor crescia junto aos fios de Sang Jiu em seu peito.
O Diabo e a esposa desceram os degraus bem devagar. Para surpresa de todos, o Diabo — que nunca se curvava a ninguém — se inclinou para o pequeno príncipe contemplando o huadian de flor de amoreira em sua testa. Sorriu de felicidade, dispensou a manopla de garras e acariciou seu lindo rostinho com a mão nua.
— Pequenino, quem você é? — perguntou para a criança tentando ver seu espírito verdadeiro.
— Eu sou o Orbe de Fogo do Abismo!
Sang Jiu não resistiu em abraçar o filho e beijá-lo nas bochechas. Chu Mo abriu os braços erguendo a criança do chão e a acomodando em seu colo. Olhou para Sang Jiu e conforme o protocolo de reconhecimento de paternidade, se virou para seus súditos para nomear a criança.
— Eis o Príncipe Herdeiro do Reino Demoníaco! ShenYuan HuoZhu! Carne e sangue do Deus Diabo. O orgulho dos Quatro Continentes e Três Reinos. A Joia Suprema do Rio Mo. Cultivado no fogo líquido das entranhas do abismo, nascido de armadura e brincos com um sol em cada olho! Mestre que abrirá as portas do Reino Fantasma e triunfará sobre os mortos. Implacável e poderoso cujos pés podem esmagar as Montanhas Kunlun e torna-las pó. Exuberante em beleza como sua mãe, a Imperatriz Sang Jiu. Que seja também auspicioso, diligente e justo como o Dragão de Jade. Reverenciem a Pequena Alteza Sang HuoZhu!
Todos se prostraram em respeito máximo ao herdeiro do Deus Diabo.
— Longa vida ao Príncipe Herdeiro Sang HuoZhu! — disseram repetidamente em uníssono.
Chu Mo colocou o menino no chão novamente. Ele e Sang Jiu deram as mãos à criança e a levaram para sentar entre eles no trono. As servas trouxeram bandejas com escovas e muitos adornos. O Deus Diabo e sua esposa pentearam o cabelo de seu amado filho ornamentando com tranças, contas de ouro e pérolas e uma rica coroa de jade. Após estar devidamente arrumada a criança deu uns passos a frente olhando um por um de seus súditos. Produziu pequenas esferas peroladas de seus dedos e as disparou certeiramente no coração de vários deles incendiando-os de dentro para fora até se tornarem uma pilha de cinzas.
— Eu, o príncipe Sang HuoZhu, deixo esse pequeno aviso a quem se dispuser a caluniar e conspirar contra o Pai e a Mãe Real. Que nossa convivência continue pacífica e auspiciosa!
Sang Jiu estava surpresa, mas nada disse. Por muitos séculos impediu o próprio marido de dar um fim naqueles caluniadores para que não levantasse animosidade no reino demoníaco por sua causa. Agora seu filho se livrava daqueles demônios odiosos num piscar de olhos. Quanto a Chu Mo, até tentou prender o riso por conta da situação, mas gargalhou longamente enquanto seu adorável pestinha absorvia as almas daqueles canalhas.
A criança percebeu dois olhares orgulhosos entre os súditos e foi até eles saltitando alegremente.
— Tia, tio, vamos brincar?
Chu Mo sinalizou que Si Ying e Jing Mie se retirassem com a Pequena Alteza para se divertirem, mas antes Sang Jiu advertiu o filho:
— Huo-er, chega de matança! Caso se sinta ofendido por alguém, primeiro conte aos seus pais! Promete que será obediente?
— Sim, mamãe!
— Agora pode ir brincar com os tios.
Si Ying e Jing Mie a reverenciaram antes de retirar e era visível que estavam mais aliviados. Chu Mo apertou os lábios tentando não rir e dispensou a corte. Quando o último súdito passou pela porta ele relaxou sentindo aquele calorzinho bom dentro do peito. Sang Jiu deitou no colo dele e suspirou longamente enxugando as lágrimas de felicidade.
— Está gostando de ser pai?
— Estou.
— Então tem agir como um! Coloque em prática tudo o que estudamos ao longo desses anos. Prometemos que não íamos mimá-lo, lembra?
— Ah, vai dizer que não foi divertido? — riu colocando a mão sobre a boca.
Sang Jiu o beliscou na coxa e também riu.
— Certo. Foi!
Chu Mo se ajeitou no trono como se fosse um grande sofá e deitou puxando Sang Jiu para junto de si. A Imperatriz acariciou seu rosto afastando uma mecha de cabelo anelado e o beijou.
— Você fica incrivelmente mais bonito quando sorri assim.
— O mérito é todo seu, minha amada. Fique tranquila que vou me esforçar para ser um bom pai para Huo-er.
— Comece por não deixar ele matar todos os nossos súditos!
— Certo... — murmurou fazendo beicinho — Mas eles mereceram!
Chu Mo a abraçou enchendo de beijinhos doces e bobos até que a envolveu com mais ardor em seus braços, buscando seus lábios numa ternura lasciva, mordendo e chupando enquanto entrelaçavam as mãos e as línguas.
— Jiu-er... — sussurrou — Temo que Si Ying e Jing Mie não tenham energia para lidar com nosso príncipe. Quero fazer mais filhos... Você também quer?
Ela roçou a haste grossa e dura despontando entre as pernas dele e pressionou com seu corpo enfim se colocando por cima.
— Humm... Quero!
*****
E Sang Jiu realmente engravidou...
O Deus Diabo ficou muito feliz em sentir três pequenos núcleos dourados bem formados na barriga de sua esposa. As chances de algum deles ser uma menina assim como Sang Jiu havia desejado eram maiores. Ela, por sua vez, estava achando que aquilo havia saído um pouco do controle. Três crianças de uma vez era um número muito alto. Se todas fossem hiperativas e travessas como Huo-er ela iria enlouquecer. O Deus Diabo, porém, a tranquilizava se propondo a ajudá-la no que fosse necessário. Seus dias eram longos e ociosos e um ou outro problema o perturbava aqui e ali, mas nada muito grave.
Ele gostava muito de brincar com Huo-er apenas pelo prazer de passar um tempo de qualidade com seu filho. Chu Mo era um deus que se criou do nada e sua existência era o balanço para o excesso de energia yang. Por isso, devido à sua natureza yin ele só poderia oscilar entre o maligno e o neutro. Em seu estado absoluto ele jamais precisaria se envolver nos assuntos dos deuses, demônios, mortais e fantasmas, pois era superior a tudo aquilo e sequer tinha olhos, ouvidos e boca para se manifestar. Após ser capturado na armadilha dos deuses criadores e quase perder todo o seu poder, o que sobrou de si entrou em torpor por milhares de anos e despertou como uma entidade absolutamente maligna focada em destruir. Aquele antigo Chu Mo que só queria executar a Formação Tongbei jamais imaginaria que um dia teria um lar com uma esposa a quem amaria com todas as forças e que adoraria ser pai e brincar com o fruto desse amor.
Aos olhos comuns era mais um treinamento de guerra do que uma brincadeira, mas pai e filho se divertiam verdadeiramente cultivando para aumentar seus poderes destrutivos. Sua armadura natural era resistente a todo tipo de coisa tornando-o muito bom em defesa e ataque. Huo-er herdou a capacidade de formar ilusões complexas e perfeitas, assim como seu pai e gostava de treinar nos rios e mares onde era possível potencializar as miragens. Mas vez ou outra pai e filho apenas conversavam pelos pátios do reino demoníaco enquanto chutavam uma pequena bola para lá e para cá.
Antes de conhecer Sang HuoZhu, Chu Mo sabia que teria sentimentos especiais pela criança, mas não imaginava que seria tão forte. O espírito verdadeiro de Chu Mo não tinha forma, portanto, sequer acreditava que poderia doar algo para seu filho. De certa forma, por muito tempo invejou secretamente aquele ovo de dragão cuja dominância paterna saltava aos olhos. Agora percebia o quanto foi bobo. Sua adorável criança molusco o cativou de imediato. A infância, porém, não durava para sempre. Huo-er era muito poderoso e logo atingiu a aparência adulta com uma beleza impressionante. Seu ânimo, no entanto, era sempre muito radiante como nos tempos de criança. Sang Jiu teve outros filhos e Chu Mo teve o mesmo encantamento por cada um deles. A vida era pacífica e o Deus Diabo e sua Imperatriz podiam se dedicar quase integralmente à família. Seu reino era vasto e temido. Ele era deus e demônio ao mesmo tempo e ninguém era capaz de confrontá-lo.
Então algo curioso aconteceu.
Com a escassez de entidades divinas o povo comum começou a erigir templos para o Deus Diabo. Foi um início tímido com os povos dos oásis do entorno do Abismo Estéril e das florestas mais próximas dedicando pequenas elevações de pedras, placas e monumentos em agradecimentos a favores. Às vezes ficava muito tempo sem chover em determinada região e após ouvir reclamações Chu Mo ordenava que os demônios da seca se retirassem das proximidades por alguns anos, por exemplo. Muitos demônios viam os mortais como gado, então o simples fato do Diabo proibir a caça predatória já era tido como positivo.
Dessa forma, realizando esforços mínimos, o Diabo anteriormente temido como divindade maligna agora tinha vieses mais neutros no imaginário popular. Em grandes cidades haviam até festivais em sua homenagem e ele ganhava vários nomes conforme as localidades! Histórias sobre sua vida eram contadas, recontadas, adulteradas ou completamente inventadas e inspiravam admiração e temor. Sempre que uma criança nascia era auspicioso dar a ela um cubo de jade. Acreditava-se que quanto mais perfeita era a lapidação do cubo, mais potencial de proteção aquela joia tinha. As óperas populares gostavam de representar o romance do Deus Diabo e a Imperatriz Sang Jiu. Por várias vezes o casal se disfarçou como mortais para espiar as festas e Sang Jiu sempre os arrastava para ver as encenações teatrais. Ele nunca gostava quando o enredo mostrava a parte em que ela havia sido esposa do antigo deus da guerra. Chu Mo sempre vaiava o ator que interpretava Ming Ye e acabava sendo convidado pelos donos dos estabelecimentos a se retirar.
Os mortais tinham uma vida efêmera e se reproduziam tanto nesse curto período de tempo que suas cidades se somaram umas as outras formando verdadeiros impérios. Eles agora tinham reis, leis, exércitos e se enredavam nos próprios problemas. A maioria passava a vida inteira sem nunca ter contato com um demônio ou imortal. Eras se passavam e tudo o que eles sabiam sobre esses seres maravilhosos agora mais soavam como lendas antigas e folclore. Mas também haviam aqueles que acreditavam que um dia houve uma grande guerra entre os celestiais e o reino demoníaco em que ZhanShen Ming Ye caiu do alto dos céus nas águas fracas e foi salvo por um humilde espírito de molusco. Que eles se casaram em clima de contenda e foram infelizes até que a pobre molusco se tornasse um demônio terrível. Que o próprio Deus Diabo se atraiu por essa mulher demoníaca e a tomou para si gerando uma prole forte e heroica. Que ZhanShen Ming Ye desapareceu no deserto e nunca mais se soube de nada dele. Que a ossada humana em posição de lótus no fundo de uma caverna na Montanha Kunlun, atraindo peregrinos para orar e depositar flores e incensos seria de um poderoso imortal da era dos deuses antigos. E que a história da vida deles, mesmo cheias de lacunas e abertas a diversas interpretações, inspirou alguns dos mais belos épicos já escritos por sábios e poetas da antiguidade.
Chu Mo e Sang Jiu colecionavam esses livros do mundo mortal e liam juntos. Às vezes se divertindo por longas horas num eterno jogo de procede ou não procede, ou apenas passando raiva com o excesso de mentiras que sobreviveram ao tempo.
— “... e a mulher diabólica e cruel deixou tudo para trás e se lançou nos braços do senhor demoníaco partindo com ele para uma vida de luxúria e crimes. O deus dragão, coitado, ficou desolado em completo abandono às margens do Rio Mo. De punhos cerrados, seu rosto gritava vingança, mas seu peito chorava amargando a maior dor de toda a sua existência...” Ora, ora, esses fãs do dragão... Absurdo! — Sang Jiu fechou o livro com força e atirou longe — Eu mesma quero matar quem escreveu esse monte de merda! Eu que sou a heroína! Eu!
Chu Mo encheu um cálice de vinho e serviu a ela.
Houve um momento num passado longínquo em que os mortais se multiplicaram de um modo que não havia mais como conviver. Seres de grande poder tinham vidas longas e eram nutridos pelas veias espirituais do Deus Diabo espalhadas pela Terra. O Dragão de Jade que jamais interferia na ordem dos Três Reinos propôs que demônios e imortais se retirassem do mundo e dessem lugar ao domínio humano. Parte da humanidade desconfiava que a imortalidade poderia ser alcançada. Se a maioria deles conseguisse se iluminar as veias de poder espiritual poderiam se sobrecarregar e enfim se extinguir. Todos os seres e monstros entrariam em declínio vertiginoso.
O reino fantasma era o único domínio seguro para o qual os humanos ainda vivos não iriam querer migrar. Com isso, ficou acordado que imortais e demônios migrariam para dimensões próximas e o Dragão de Jade selaria as fontes de poder.
Naquela época apenas o Pilar Celestial havia restado do Reino Shangqing e foi totalmente encoberto por Yulong com uma cadeia de montanhas. O Rio Ruo foi submerso e as seitas imortais e seus tesouros foram migrados para as Ilhas PengLai, cujas barreiras de proteção poderosas as tornavam impossíveis de serem encontradas por olhos humanos. O reino demoníaco abriu um portal e se retirou permanentemente do Abismo Árido juntamente com o reino das bestas. Agora eram uma área turística de cânions profundos muito procurada por adeptos de escaladas e aventureiros em busca de trilhas místicas, afinal, a energia yin ainda era forte mesmo sem a presença dos demônios.
Os Quatro Continentes e Três Reinos no mundo moderno ainda eram visitados por imortais e demônios. Muitos até se adaptaram e preferiam morar entre os mortais disfarçados como pessoas comuns. Era o caso dos generais Si Ying e Jing Mie e boa parte dos demônios dos pesadelos. Sang Jiu e Chu Mo preferiam a comodidade de seu belo reino demoníaco onde suas identidades não precisavam ser ocultadas, mas vez ou outra também passeavam entre os homens.
Chu Mo pegou o livro do chão e deitou numa espreguiçadeira.
— “Shangqing: Crônicas dos Doze Deuses Antigos”. Jiu-er, com um título desses ainda esperava que tivesse algum parágrafo bom sobre nós?
— Bom, eu...
— Admita. Espera que algum desses autores que nasceram milhares de anos depois de nós, quando nossos nomes e o nome dos nossos filhos já não eram mais do que lendas populares, realmente saibam de alguma história que a gente já não saiba?
Sang Jiu fez beicinho um pouco chateada e enfim concordou com um meio sorriso. Tomou o vinho de amoreira de uma vez e foi se sentar numa almofada perto dele.
— Jiu-er, porque não passamos um tempo no reino dos mortais? Você parece entediada.
— Sem usar meus poderes e ter que me mover o tempo todo caminhando ou naqueles meios de transporte super lentos? — franziu a testa — De jeito nenhum!
— Disfarçada como humana você poderia escrever e lançar a sua versão da história!
— Já pensei nisso, mas há coisas que prefiro esquecer.
— Tem medo de acabar fazendo alguma justiça a Jiaolong Ming Ye?
— Mais justiça do que esses autores já dão a ele? — zombou segurando o livro de qualquer jeito, como se fosse uma coisa suja — Chu Mo, ele é um personagem carismático e querido. Um deus justo, heroico, defensor da paz, isso e aquilo, e a maioria dessas histórias misóginas dizem que eu fui uma adúltera safada que o abandonou para fugir com um cara mau. Ninguém sabe o quanto eu sofri! — soltou uma risada sincera — Não vejo nenhuma dessas histórias mais recentes relatando o quanto ele me tratava como um pedaço de merda. No máximo dizem que ele era estoico ou tímido, incompreendido... Balela! Bando de machistas de merda!
Chu Mo riu e quase se engasgou com o vinho.
— Devem ter sido derivadas dos escritos daquele antigo imortal entusiasta da queda de Shangqing, Pang YiZhi! Os talentos de cultivo dele eram terríveis, mas ele tinha boa lábia e vivia atrás daquele tal Príncipe Camélia do antigo reino Sheng que o favorecia muito. Era o maior apologista de Ming Ye daquela época e escreveu muita asneira que é replicada à exaustão e tida como verdade absoluta só porque ele é o autor mais antigo nos registros.
— Maldito, Pang YiZhi! Acho que pedirei ao nosso Huo-er que traga a alma dele do reino fantasma só para que eu possa descarregar minha raiva. O que acha?
Chu Mo a segurou pelo queixo e lhe deu um olhar sedutor.
— Acho que você tem um charme todo especial quando está com raiva. Por que não descarrega um pouco disso em mim?
Sang Jiu estava quase derretendo de tesão. Seu lindo esposo era sempre tão sexy que até as veias do pescoço eram muito atrativas pulsando e a faziam salivar de vontade de dar uma mordida. Mas a Imperatriz se controlou e o repeliu com gentileza.
— Hoje não! Sempre que me olha desse jeito eu fico grávida e não aguento mais ter filhos! Por sua causa eu já pari quinze vezes! Fico mais de mil anos com um bebê na barriga e depois que eles nascem só querem saber de ir para a porcaria do mundo dos mortais se divertir com as bugigangas deles. Ingratos!
Chu Mo ficou admirando o rosto de sua amada que esbravejava sobre os filhos e reclamava de tudo. Na realidade eles só haviam tido catorze filhos, mas Sang Jiu sempre contava com o Dragão de Jade, filho dela com Ming Ye. Aquela menção não o aborrecia de modo algum, mas ele parecia entender que embora ela reclamasse dos filhos em geral todos eles voltavam para casa e se reuniam para festividades em algum momento de suas longas vidas. Com o nível de cultivo altíssimo e descendendo diretamente de um deus, todos se mantinham jovens mesmo já tendo netos e até bisnetos. A família do Deus Diabo era muito numerosa. Mas no coração de Sang Jiu sempre havia espaço para aquele poderoso Filho dos Céus que quase nunca aparecia.
Embora os dragões divinos fossem raros de serem avistados Sang Jiu o viu algumas vezes. A primeira foi quando Huo-er ainda era uma criança e ela estava grávida de trigêmeos. Passeava pelas margens do Rio Mo mostrando ao príncipe aquele domínio especial pelo qual ele tinha que zelar no futuro, pois o pai e o irmão dela tinham acabado de reencarnar, quando uma sombra cobriu uma grande parte da terra como uma nuvem gigante. Ao olharem para cima avistaram o corpo imenso e majestoso do dragão alado de quatro patas, coberto de escamas de jade verde e branco, chifres longos e uma bela cabeça emplumada serpenteando no vasto céu.
A criatura divina brilhou intensamente como se fosse explodir e então se revelou em forma humana. Um belo garotinho de cabelos negros e olhos verdes vestindo branco com barrados celadon bordados em ouro e prata, coberto de peças de jade. Seus cabelos também jaziam soltos e ele tinha uma coroa de cabeça nas mãos. Sang Jiu sabia o que ele queria. Todos os filhos se sentiam honrados em ter o cabelo penteado e preso por seus pais. Aquele dragão não precisava disso, pois sua natureza era eremita e desapegada do mundo, mas Sang Jiu entendeu algo e se emocionou ao atar o cabelo macio e sedoso daquele filho. Huo-er sentiu um pouco de ciúmes. O dragão, porém, pareceu ter um sorriso sutil e simpático no rosto e retornou ao céu deixando para trás uma gema aquática que Sang Jiu reconhecia. Era a sua antiga espada regeneradora de água que julgava perdida desde que fugiu para o reino demoníaco.
Sang Jiu ficou obcecada e por um tempo pareceu adoecer de vontade de ver esse filho. O jeito foi o Deus Diabo ir pessoalmente em busca do dragão divino. Chu Mo percorreu os Quatro Continentes e Três Reinos, visitou todos os lugares mágicos secretos e até peregrinou pelas Montanhas Kunlun sem obter sucesso. Aquele dragão não queria ser encontrado. Embora Yulong fosse um deus justo, nunca houve uma punição divina como as dos antigos deuses do trovão e do relâmpago desde o seu surgimento. Aquela criança sábia estava muito acima dos problemas do mundo. Então um dia espontaneamente Yulong apareceu nos domínios do Deus Diabo para acalmar o coração de sua mãe. Trocaram umas poucas palavras, mas dessa vez ela pareceu compreender o que ele era e não ficou tão triste ao vê-lo partir.
A terceira e última vez que Sang Jiu encontrou o Dragão de Jade ele nada disse, apenas pairou sobre as águas do Rio Mo durante a noite e devolveu a ela o véu negro bordado de conchas antes de subir para as estrelas. Chu Mo vivia com Sang Jiu tempo suficiente para também sentir a dor pungente em seu coração. Sendo assim, abriu um jarro de vinho de amoreira e derramou respeitosamente no chão.
Sang Jiu guardou para si aquele sentimento e nunca disse uma palavra, embora soubesse que para o Deus Diabo a quem amava sobre todas as coisas não havia segredos. Agora, olhando a capa daquele livro tendencioso com uma bela ilustração do deus da guerra e toda uma romantização descabida no miolo, ela ficou um pouco melancólica e ergueu o olhar a esmo.
— Naquele deserto eu dei adeus para uma criança lamentável que nunca conheci. Foi por ela que eu chorei quando ele se foi.
— Eu sei.
— Se eu escrever uma história do meu ponto de vista aquela criança vai acabar revivendo.
Chu Mo deslizou os dedos gentilmente secando as lágrimas da esposa e a trouxe para seu abraço caloroso. Deixou que ela chorasse por Ming Ye sem jamais julga-la e ao fim apertou o nariz avermelhado dela como se fosse uma campainha, fazendo-a rir.
— Um dos netos de Huo-er enviou um poster do mundo dos mortais!
— Um poster? De quê?
— Um filme sobre mim!
— Ah, é mesmo? — esfregou os olhos empolgada com a mudança de assunto — Viu, até você virou personagem de um filme. Aposto que é algo legal...
Chu Mo conjurou o tal poster e deu para Sang Jiu olhar.
— “A Maldição do Osso Demoníaco I – A Ascenção do Deus Demônio.” Isso tem cara de ser bem mais ou menos... e você está muito empolgado, não é?
— Claro que estou! Não viu aí o elenco? É o Luo Yunxi quem vai me interpretar!
— Luo Yunxi? Ah! Aquele imortal cuja beleza é tão surreal que até os mortais desconfiam que ele não seja totalmente humano?
— Ele mesmo. Adoro o trabalho dele!
— O Deus Diabo sendo fã de atores... Quem diria...
Ele deu de ombros e fez uma careta meiga para ela.
— E olhe quem vai interpretar você! — apontou para o rosto da atriz Bai Lu — Lembra dela?
— Ah, não acredito! Esses safados nem disfarçam... — admirou maravilhada ao reconhecer a conterrânea.
Sang Jiu devolveu o poster e se sentiu convencida a ir ao cinema no mundo mortal.
— Pena que vou ter que disfarçar minha beleza inigualável e ainda por cima usar aquelas roupas sem graça dos mortais.
— Eu acho que você fica muito linda com qualquer roupa. Especialmente aquelas vestes dos mortais que deixam as pernas de fora!
— Acha mesmo?
— Acho!
— Safado!
Ele envolveu o pescoço de Sang Jiu capturando sua nuca e roubando um beijo carinhoso e aprofundado. A língua quente e macia explorava a boca da Imperatriz lhe tirando o fôlego. O desejo marcava a pele com mordidas despertando uma vontade louca de tirar a roupa. As peças iam ficando pelo chão e os amantes se tornavam um se entregando sem pudor ao amor.
EPÍLOGO
Remoendo suas mágoas Ming Ye seguiu pensativo pelo caminho que foi indicado e resolveu desviar dele após meio dia de viagem. Algo dentro de si entendia que não fora totalmente desprezado. Aquela mulher cruel ainda tinha algo da criaturinha inocente que conheceu há muitos anos num passado tão distante que mais parecia um sonho.
“Ela não me odeia, apenas demonstrou compaixão. Por quê? Quando me tornei digno de sua pena, Sang Jiu?”
Compaixão era algo que sempre lhe tirava boas risadas de escárnio. Por quase toda a vida acreditou que era mesmo uma divindade misericordiosa e promotora da paz nos Três Reinos. Quando surgia nos céus com o estrondo do trovão e a velocidade do relâmpago era ele próprio O Exército. Um único homem em uma armadura resplandecente empunhando sua poderosa alabarda Pojun, massacrando inimigos e acreditando piamente que o destino dos Três Reinos pesava sobre suas costas.
“Ele dizia que eu era o seu orgulho. Que se sentia honrado em ter preparado todo o caminho da minha ascensão. Que era como se eu fosse o filho homem que ele nunca teve... Um pai... Também nunca tive. Sempre fui o menor e mais desprezado entre os meus. Pensando bem, não havia a mínima condição de me manter puro em um mundo que exaltava os fortes e engolia os fracos.”
Olhou para suas mãos tão calejadas com vontade de chorar, mas apenas o rosto se contorceu. Nenhuma gota por si mesmo. Todas foram derramadas naquela cela imunda em que ficou encerrado por trezentos anos.
“Ao menos pude expiar meus pecados e mal tive tempo de pensar no que realmente me machucava. Mentira... Aquela maldita memória reavivada sempre me perseguiu. Ele era tão bom e gentil. Como fui educado tanto tempo para combater o mal e nunca o percebi em seus olhos?”
A preciosa água acabou. Ming Ye vagou por dias no mar de areia esperando pela morte. O colar o impedia de tirar a própria vida, mas era inútil se a morte o encontrasse de alguma forma. Seus lábios racharam até sangrar. Seus joelhos tombaram na areia escaldante e fofa. Seu corpo relaxou e aguardou. Sua única força se concentrou em uma das mãos apertando firme o véu negro até sua visão escurecer.
Aqueles dias foram muito difíceis, mas as faces da bondade se mostravam em seu estado mais puro. Despertou numa pequena aldeia sendo muito bem cuidado pelos mortais. Pelo bom estado de seu corpo talvez tenha ficado em torpor por mais de um mês recebendo cuidados dos aldeões. Ming Ye não tinha bens valiosos para retribuir a hospitalidade então permaneceu na pacata aldeia por alguns anos prestando serviços comunitários. A medida em que a carne ia preenchendo seu rosto encovado e ele recuperava sua bela forma, dividia com aqueles mortais alguns de seus conhecimentos. Ensinou a norma culta do idioma dos Três Reinos para as crianças, treinou adultos nas artes bélicas e usava o que ainda restava de seu poder em pequenos truques para entretenimento. Queriam lhe oferecer várias esposas, mas ele sempre recusava. Passava o tempo fazendo anotações sobre os costumes dos mortais. Havia muita coisa interessante que ele desconhecia. Um dia partiu sem se despedir.
Com muita dificuldade retornou a Shangqing. Seu cultivo havia regredido muito e por muita sorte não perdeu toda a sua medula espiritual. A capital do reino de cultivo superior estava muito longe no alto céu e ele não conseguia mais mudar para a forma de dragão e muito menos voar em forma humana por muito tempo.
Mas algo o ajudou...
Ao abrir os olhos estava em seu antigo quarto no Palácio Yuqing. Tudo estava estranhamente perfeito e limpo, embora não houvesse ninguém para atendê-lo. De qualquer forma ele sempre fez tudo sozinho e não resistiu deitar naquela cama onde um dia sua linda esposa o imobilizou e cobrou seus direitos de mulher casada à força.
Era como se o cheiro dela nunca houvesse saído dos lençóis. Ming Ye rolou de um lado a outro inalando e abraçando o travesseiro com força, rindo debilmente de tudo aquilo.
“Que droga poderosa, Sang Jiu! Bastou uma vez e me viciou... Uma vez! Me enfiar entre suas pernas foi a minha ruína... Eu devia ter me mantido puro, mas por você estava disposto a me sujar na lama mais imunda. Mas não foi você quem me corrompeu... eu só queria que fosse...”
Abriu os braços com os olhos fixos no teto, encarando o painel refinado e colorido que recontava as origens das divindades. Viu seus amigos que já haviam partido na grande guerra e também aquele de quem ocupou o lugar tempos depois. Esticou o braço querendo alcança-lo num misto de raiva e tristeza e fechou o punho se sentindo inútil e fraco.
“Por que não me pediu o núcleo? Eu o daria com prazer... era só pedir. Não precisava forçar.”
Com um sorriso amargo fechou os olhos e adormeceu. No dia seguinte não quis levantar da cama, mas também não suportava mais olhar o painel do teto. Se forçou a caminhar e mexer em coisas que faziam parte de sua rotina, mas tudo agora era tão estranho e distante. Nada ressoava com seu espírito. Abriu seu armário e aquelas vestes tão ricas e bonitas não pertenciam mais a ele. Não se via mais no manto imaculado com véus azuis e adornos de ouro. Quem usava aquelas roupas e caminhava tão elegante que mal se ouvia o som dos passos era um outro alguém. Ainda assim precisava vestir algo limpo e pegou as vestes mais simples que encontrou.
Os mantos do antigo deus da guerra eram todos luxuosos e finamente trabalhados, então no máximo podia se contentar com uma vestimenta discreta. Amarrou os cabelos no alto como antigamente, porém sem nenhuma coroa, apenas uma fita branca enrolada bem firme. Se olhou longamente no espelho de prata pensando em como seria o seu recomeço. O que ainda havia para resgatar? E por que ele deveria recomeçar?
Deu um passeio por todo aquele reino desolado cujo mato crescia alto onde antes havia os mais belos jardins dos Quatro Continentes. Curiosamente ainda havia beleza naquela manifestação selvagem. Os canteiros rachados, vasos quebrados, troncos entortados, raízes quebrando o chão de pedra, árvores livres esticando galhos e folhas para qualquer parte sem que ninguém mais os podasse. Ming Ye passou mais tempo imerso em sua alma refletindo sobre alguns galhos secos de cipreste do que nas poderosas câmaras de reclusão.
“Eu vou me reestabelecer na vida e voltar a cultivar. Mas meu lugar não é aqui. Shangqing foi uma armadilha disfarçada de sonho. Nunca quis estar aqui. Nunca quis ser ZhanShen Ming Ye... Eu só queria nunca ter sido uma cobrinha preta miserável. Sinto que seria feliz se fosse qualquer outra coisa...”
Naquela noite ele não dormiu em seu antigo aposento. Subiu para a plataforma celeste e sentou em pose de lótus para meditar. O ar frio penetrava nos ossos. Pensou que todos aqueles dias felizes junto aos deuses antigos só puderam ser desfrutados porque um pervertido cobiçava seu poder e lhe forçava cultivo duplo sem que ele soubesse. Uma cobrinha preta abandonada num ninho imundo jamais teria valor por si só. Seu mestre o fez viver uma grande mentira e foi incapaz de consumar o ato final. Irônico pensar que se não fosse pelo Deus Diabo a vingar uma pobre demônio da seca, cuja irmã havia sido torturada e morta por celestiais, dando fim à existência de Tian Hao, ele sequer estaria vivo. Aquele maldito demônio de quem ele nunca soube o nome e só recentemente viu o rosto nunca fora seu verdadeiro inimigo.
“Eu, ZhanShen Ming Ye, fui apenas um peão. Que patético.”
Apertou os olhos com mais força e cerrou os punhos tentando esvaziar a mente. Infelizmente a visão insuportável de seu corpo inerte sendo aberto pela força daquele homem vil o impedia de se manter concentrado. Seus poderes eram mínimos e sua vontade quase inexistente. Por que não desistia logo? Seu rosto molhado ainda preservava o esforço de ao menos manter os olhos fechados. Aquelas coisas feias não iriam parar e ele precisava muito vencê-las. Mas para quê? Para quem? Por si mesmo? Ora, ele não era ninguém e se prezava muito como autodepreciador.
“Em uma chama tão pequena açoitada pelo vento frio vale a pena adicionar mais gravetos? Não é melhor jogar areia?”
“Por que sinto que estou muito perto de descobrir algo e ao mesmo tempo tão distante que mal consigo perceber?”
“Às vezes só há um caminho que leva a perdição e ele nunca é torto e está sempre a sua frente. Por que é tão difícil olhar essa estrada reta e limpa e ver onde está o erro?
“O que há no meu caminho? Eu deveria saber, pois o conheço melhor do que ninguém... Felizes foram os meus irmãos que nunca nasceram. Felizes foram os meus pais que nunca me conheceram. Felizes... bom, não sei mais continuar a partir daqui.”
“Que tal, e se?”
“Oh, claro! E se... e se eu não fosse uma cobrinha preta? Meu clã teria encontrado uma boa família disposta a cuidar de mim? Eles teriam me amado? Eu saberia o que é o amor? Eu... eu sei o que é o amor? Ou não sei?”
E ali algo mudou definitivamente. Ming Ye se esforçou para buscar a força interior de que tanto precisava para entender a si mesmo. Pela manhã tomou apenas a roupa do corpo e uma bolsa qiankun carregada de itens úteis, além de bastante papel e tinta. Deu uma última olhada no Pilar Celestial e partiu sem arrependimentos.
Sua infância foi marcada pela tragédia, sua juventude foi uma farsa e durante muito tempo atribuiu sua queda em desgraça ao amor por uma mulher. Mas era mesmo amor? ZhanShen Ming Ye sabia amar? Agora parecia tão nítido... Ele conhecia o ódio e o desprezo e seu coração era endurecido ao afeto. Ele tinha uma dívida de gratidão e admiração pelo poder de seu mestre. Ele se obrigava a ter consideração pela filha do mestre que o tirou da lama e o colocou no caminho auspicioso. Ele tinha respeito por todos os deuses que admiravam seus progressos como único discípulo do Imperador dos Céus, mas será que em seu coração ele os via como amigos de verdade? Quantas vezes não reprimiu internamente o envaidecimento por sua própria posição?
“Sang Jiu... eu sempre fui cego ao amor e genuinamente não gostava de você... Você era uma criatura humilde demais. Eu era ZhanShen Ming Ye e você era o quê? Uma reles princesa de um reino insignificante. Por que eu deveria aceitar de bom grado aquele casamento que não me trazia vantagem alguma, só vergonha? Tudo o que eu queria era recusar a proposta do seu pai, mas Céus e Terra diziam que eu era um homem honrado! O que diriam de mim? Sang Jiu... eu nunca amei você. Nunca... Eu odiava o seu amor por mim. Agora eu entendo... Eu gostei do seu corpo e acreditei que era amor. Eu estava obcecado e talvez ainda esteja, mas... eu não sei o que é amor. Eu não sei.”
“Mas eu sei que fui um tolo e lamento que você tenha perdido tanto por minha causa. Eu me apeguei a um momento de prazer e construí um palácio de areia em volta disso. Mas você era a única pessoa que poderia me fazer feliz e eu te desprezei. Eu nunca te mereci. E mesmo sabendo que minha obsessão não é amor, me dói reconhecer que não te amei. Então eu acho que te amo sim, Sang Jiu. Eu só não soube como te amar...”
Ming Ye iniciou uma viagem de autodescoberta por todos os continentes. Por muito tempo foi apenas um observador. Os costumes das cidades maiores eram diferentes da pequena aldeia que o salvou da fúria do deserto. Logo se acostumou. Foi uma longa jornada com muitos períodos de introspecção e extroversão lidando com os mais diversos tipos de pessoas. Se estabeleceu em tantos lugares diferentes e fez tantos amigos quanto foi possível. Por várias vezes a vida era tão boa que ele até esquecia quem de fato era. Muitos viam que ele não era normal. Passava-se trinta, cinquenta anos e seu rosto não mudava. Diziam que era um imortal renegado que não pertencia a nenhuma seita e às vezes cultivadores baderneiros vinham desafiá-lo. Ele não era mais o Deus da Guerra, mas podia lidar com um bando de inúteis de pouco poder.
Aquele mundo era verdadeiramente bonito. Queria não ter sido privado de tão belas cores em prol de uma existência resumida a guerrear contra os demônios. Assim como imortais e mortais, os demônios estavam por toda a parte e não necessariamente eram maus. Fez até bons amigos entre eles! Aquele período sabático, onde registrou milhares de anotações e pinturas de lendas locais e histórias sobre deuses e demônios segundo o ponto de vista popular, chegou ao fim. Seus olhos haviam visto muita coisa e sua alma se embriagou com o vinho da vida. Ele estava cansado. Ainda era um imortal e seu rosto era jovem e belo, mas seu cultivo regrediu muito e logo seus cabelos ficaram brancos.
Naquele ano, Ming Ye largou a vida mundana e se retirou para as Montanhas Kunlun. Levou consigo apenas o véu negro da Imperatriz demoníaca enfeitando seu cinto. Encontrou uma caverna gelada próximo a um dos picos e passou a cultivar ali. Aquelas montanhas eram abundantes em energia espiritual e dizia-se até que era a morada dos primeiros deuses, muito antes da existência de Shangqing. Anos e anos vivendo sozinho pensando e repensando seus erros atraiu novamente aquela voz amigável.
“Sentiu minha falta?”
“Não sabe mais que dia é hoje?”
“Importa?”
“É seu aniversário!”
“Bobagem. Nem eu sei quando nasci... Quando rompi a casca do ovo passei anos sozinho no fundo de uma caverna no mar, me alimentando de toda coisa minimamente comestível que passava por perto, temendo ser devorado por algum predador. Ninguém registrou o dia e a hora em que nasci. Ninguém previu a minha sorte. Ninguém me deu um nome. ShenJun Tian Hao me fez acreditar que nasci num momento auspicioso porque era a propaganda perfeita para o exército celestial, mas cada vez acredito que nasci sob uma estrela de miséria.”
“...”
“Parece que finalmente aborreci você. Por que insiste em me ver? Sou grato por ter me curado e freado a minha loucura mas, por que perde seu tempo com alguém que teria lhe transformado em remédio?”
“O tempo é meu e eu escolho perder do jeito que eu quiser.”
“Atrevido...”
“Abra os olhos.”
Ming Ye viu a bela criança de olhos verdes ao seu lado segurando um alfinete de jade. O canto de seus olhos estava avermelhado e ele engoliu em seco. O menino chegou bem perto encarando-o dentro dos olhos, quase tocando os narizes. Ming Ye sentiu um toque gelado na alma que logo se tornou um calor morno e se espalhou por seu peito. A criança ignorou o choro daquele homem e espetou o lindo alfinete de jade em seu coque.
— Gostou?
Por um instante Ming Ye não viu apenas a criança divina, mas também o rostinho inocente de Sang Jiu na época em que o retirou das águas corrosivas do Rio Ruo e tratou sua cegueira numa cabana.
— Fui eu que fiz! Ficou muito bem em você.
Ming Ye tateou a joia e agradeceu com um aceno. Yulong era seu único filho.
— Você nunca vai crescer, garoto?
— Já sou muito grande. Quer ver?
Aquela mãozinha estendida era muito mais do que parecia. O Dragão de Jade era tudo o que Ming Ye não conseguiu ser. Por milhares de anos acreditou que se pudesse cultivar com diligência se tornaria um dragão divino e não haveria quem o intimidasse nos Três Reinos, pois seria implacável. Mas foi olhando no fundo daqueles olhos doces que entendeu que jamais teria a pureza necessária para ser como aquela criança.
A coleira feita com um fio do espírito do Deus Diabo se soltou de sua carne quebrando em pedaços. Sorriu para a criança auspiciosa pegando em sua mãozinha delicada e abandonou a caverna voando nas costas daquele dragão lendário impressionante.
— Eu já vi tudo o que tinha para ver nesse mundo.
— Impossível ter visto tudo.
— E o que ainda vai me mostrar, Yu-er?
— Vai saber quando chegar lá, mas já adianto que irá gostar! Papai!
“Papai...”
Ming Ye enxugou as lágrimas e riu daquele sentimento de felicidade ímpar. Milhares de anos de vida definitivamente valiam por aquele instante breve.
Fim.