Chapter Text
Tudo parecia chato. Não, era mais “esgotante” do que chato. Cada segundo na carruagem me deixava mais cansada, e tudo que eu queria era o conforto da minha cama e o escuro do meu quarto. Eu não queria estar ali, e eu certamente não queria estar indo para o Olimpo. Eu gosto dos amigos dos meus pais, porém eles tem muitos motivos para estarem irritados, e se eles estiverem irritados comigo? A Alice estava.
E isso doeu mais do que devia.
Ela não mentiria sobre o que disse, mentiria? Ela não parece ser uma mentirosa. Grossa, rude, amargurada? Tudo isso, sim, mas mentirosa acredito que não. No fim eu sabia que era a minha culpa. Eu pude sentir a magia, os meus instintos me alertaram de alguma coisa, e como minha mãe disse: o instinto de um caçador é sua maior arma. Eu falhei ao não ouvir meus instintos, agora meu pai estava pagando o preço por isso.
Se eu ouvisse eles, se eu tivesse treinado quando eles me pediram para treinar, se eu não fosse contra lutar, talvez tudo fosse diferente. O problema é simples — eu não quero lutar. Eu não quero ir para missões, não quero salvar deusas e lutar contra monstros, isso não é o que eu quero. Eu tenho medo, eu não quero perder meus amigos caso eu faça alguma besteira, e eu acabei de fazer uma besteira bem grande hoje. Meu pai era o mestre do Dante e do Kaizer, então eles podem estar irritados comigo. Se o Dante está irritado comigo, então a Briar provavelmente está também.
E minha mãe? Eu não tinha nem ao menos a coragem de olhá-la nos olhos. Instintivamente eu cubro o meu pescoço, abaixando a minha cabeça e respirando fundo. Eu não lembrava onde estava até voltar a pensar no que estava acontecendo. Nós fomos convocados para o Olimpo, o Alexandre ficou para trás, minha mãe usou a carruagem de prata dela para nos trazer aqui. Ótimo, até então eu conseguia lembrar de tudo, mas como eu não percebi que já estávamos no Olimpo?
Mesmo sem ter vindo aqui antes, os tronos na minha frente eram fáceis de serem identificados. Em um piscar de olhos eu já não estava mais na carruagem, e eu odeio quando eu perco o foco assim. Eu não posso perder o foco agora, não quando os deuses estavam na minha frente. Da esquerda para a direita eu vejo o trono de Poseidon, que parecia ser feito de areia e rochas. Ao seu lado estava um trono dourado e repleto de livros, propriedade de Atena. Um pouco mais distante dela estava Ares em um trono formado por espadas e várias armas de guerra. Também vejo Hefesto, com um trono mecânico, Dionísio e seu assento formado por vinhas e uma madeira escura. Por fim vejo outros tronos vazios, como o de Hera e o de Apolo, e o trono da minha mãe, Ártemis, se torna ocupado quando ela vai até o seu lugar e assume sua posição no conselho do Olimpo.
No centro do tronos estava Zeus, em uma posição mais elevada que os outros. Ela nos encarava com seus olhos brilhando em um tom azul claro semelhante ao do meu pai, e eu sabia que quando eles ficavam assim é porque eles estavam muito irritados. Claro, Zeus emanava uma energia imponente e inconfundível, mas neste momento ela não era o destaque. Em um trono escuro, mórbido e intimidador vejo um homem com um cabelo longo e pele pálida. Ele estava vestido em roupas folgadas, claramente desleixado e desinteressado na conversa. Assim que seus olhos encontraram os meus, eles se fixaram. Nenhuma reação em seu rosto — não como se fosse fazer diferença — e ele também não diz nada.
Eu sabia quem ele era: Hades.
O homem que me criou e abandonou, aqui presente. Eu não sabia o que dizer, e talvez eu não devesse dizer nada, já que era o único som que sabia pronunciar consistentemente: o silêncio. Se ele não se importa comigo, eu não deveria me importar com ele. O meu pai, o meu verdadeiro pai, está preso por correntes por minha culpa, e era a minha responsabilidade salvá-lo, eu não poderia me distrair com Hades.
— Eles têm coragem de aparecer aqui?
Deméter parece irritado. Ao contrário do que os livros diziam sobre os deuses antigos, Deméter atual era um homem. Seu rosto escondido por sua imensa barba mostrava o quão irritado ele estava conosco, ao ponto em que o ambiente ao nosso redor esfriava por sua culpa.
— É claro, seu idiota. — Ares parte em nossa defesa, exclamando do seu assento com seus braços cruzados. — Eles salvaram Atena.
— E quem garante que um deles não foi o culpado pela prisão dela? — é a vez de Dionísio participar da discussão, embora do lado inimigo. — Afinal, acidente ou não, eles soltaram aquele cara.
— É impossível ter um traidor entre eles, senhor D. — Poseidon fica de pé, uma de suas mãos segurando a mão de sua esposa com firmeza. — Eles salvaram a minha mulher, e meu filho está com eles! Ele é esperto, teria achado um traidor desde cedo.
O homem olha para Kaizer. Poseidon parecia um pescador, só que muito forte e com um rosto jovial, embora com olhos claramente cansados. Seu olho da cor do mar brilha quando Kaizer acena com a cabeça para ele, agradecendo o elogio.
Infelizmente, a discussão não para. Eu respiro fundo mais uma vez, ainda com as mãos em volta do meu pescoço e tentando manter a calma. Eu precisava ir para longe, bem longe, em algum lugar quieto e solitário. Eu não conseguia deixar eles olharem para o meu rosto, eles não podem olhar para o meu rosto.
Quando eu esperava que a briga dos deuses fosse durar muito tempo, eu sou pega de surpresa quando Atena desce de seu trono, vem na direção de Kaizer e abraça ele calorosamente. O rapaz também se assusta, mas logo envolve seus braços em sua mãe e se deixa ser tomado pelo carinho que ela oferece. Seus olhos estavam marejados, embora eu não conseguisse entender se isso era por tristeza ou felicidade. Talvez ambos?
— Eu fico feliz que você está bem, meu filho.
A deusa diz com um sorriso no rosto.
— Desculpa, mãe, eu devia ter sido mais esperto, eu…
— Não foi sua culpa, não foi culpa de nenhum de vocês. — ela põe as mãos nas bochechas do filho e faz ele olhá-la nos olhos. — Eu prometo que tudo vai ficar bem, eu não vou deixar nada acontecer com vocês.
Ela se despede de Kaizer e volta até o seu trono, pedindo perdão para Zeus por ter interrompido a discussão.
— Hm… bem, herois, vocês foram convocados hoje por conta do incidente no Cáucaso. — Zeus revira os olhos quando vê o gesto de Atena, mas logo decide continuar. — Se vocês nos contarem toda a história, contando todos os detalhes, poderemos entender como prosseguir. Espero que possamos contar com sua cooperação.
Ao lado de Zeus, vejo uma cadeira de praia com uma placa em sua lateral. Na placa eu consigo discernir as palavras “ trono de Hércules, favor não tocar” e um desenho de um coração. Era do meu pai. Por que ele não está sentado ali?
— Pode deixar, senhora Zeus! — Dante diz. Eu percebo por sua voz que ele estava muito irritado com os comentário de Dionísio e Deméter, ao ponto em que Briar segura o seu braço, impedindo-o de fazer algo impulsivo. — Só um momento, preciso consultar os bibliotecários.
Ele olha para mim e para Kaizer. Nós dois encaramos ele em silêncio, no meu caso por estar indisposta demais para contar tudo que aconteceu mais uma vez. Imagino que seja o mesmo com Kaizer. Eu sei que Dante vai fazer um bom trabalho, eu não preciso me preocupar com isso agora.
Fingindo tossir quando percebe que não iremos ajudá-lo, Dante se vira para Zeus — que parecia mais e mais irritada com o comportamento dele — e começa a contar sobre nossa jornada. Desde o momento que saímos do acampamento até quando fomos para o prédio do meu pai, usamos os pássaros, chegamos no hotel, viajamos de trem, pegamos carona com Deucalião, e todo o resto até o final. Eu mal conseguia acreditar que tantas coisas aconteceram em tão pouco tempo.
Todo detalhe que Dante omite, Briar intercede para lembrá-lo. Alguns comentários geram reações adversas dos deuses. Quando mencionamos o líquido roxo de Hermes, por exemplo, todos eles murmuram reclamações uns para os outros. Exceto Hades, que ainda estava imóvel, me encarando.
O problema é quando Prometeu é mencionado. Uma discussão alta eclode no Olimpo, onde as vozes divinas ecoam e se batem umas com as outras no palácio, gerando um caos tão repentino que eu nem conseguia distinguir suas vozes. A conversa só se encerra quando Zeus invoca um raio que gera um som tão alto que abafa até mesmo a discussão dos deuses, silenciando-os. Ao fim da história, Atena testemunha ao nosso favor, afirmando que fomos enganados por um plano de Hermes, que deu um jeito de invocar uma magia poderosa demais, até mesmo certificando-se de apagar Atena para que ela não nos ajude.
E por fim, eles usaram o Zack para nos apressar, tirando nossa capacidade de pensar friamente sobre a situação e nos forçando a tomar escolhas impulsivas. Era um bom plano, muito para o nosso azar.
— Mais alguém acredita que eles são culpados ou deseja fazer um comentário? — Zeus pergunta ao final do testemunho de Atena. Mais e mais trovões ecoam na distância, e todos os deuses permanecem em silêncio. — Então está decidido. No momento, esses herois serão comemorados e seguem sem suspeitas. Tudo que precisamos agora é ter orgulho deles e prepará-los para o que está por vir. Uma guerra como nunca antes, uma que nem ao menos temos informações sobre contra o que exatamente estamos lutando, pois a magia nas nossas memórias é tão forte que embaralha até mesmo o nosso conhecimento. Embora, há algo que eu gostaria de confirmar. Hefesto, como está o seu controle sobre as chamas?
Hefesto estendeu um dedo e uma pequena chama acendeu em sua ponta. A chama ameaça apagar algumas vezes, abaixando e aumentando várias vezes.
— Quase nada. — Hefesto responde, suspirando. — Aquele babaca.
— Então esse é o efeito da maldição, como eu temia. Seu controle sobre as chamas está sendo dividido com Prometeu, embora ele tenha a prioridade. Esse não é um inimigo comum, se o que os herois relataram for verdade, então o poder completo dele pode rivalizar o meu, de Poseidon e até mesmo de Hades, talvez até superando-nos individualmente. — ela apoia a cabeça em suas mãos, pensativa. — Mesmo que o poder dele não esteja completo, eles usaram uma de nossas peças mais importantes para compensar a perda. Se soltarmos o Tristan, talvez as consequências sejam piores do que se deixarmos ele onde está pelo momento.
— Deixar ele lá?
Minha mãe fica de pé e pergunta com um tom de raiva que eu não ouço faz anos. Seus olhos brilham em um tom prateado, e Zeus responde encarando-a com seriedade.
— Enquanto a maldição estiver de pé e podermos conter Prometeu, sim. É perigoso demais deixá-lo ter poder total, mesmo que me doa ver a situação do meu irmão. — sua voz soava triste, embora ela esteja se forçando a parecer séria. — Eu estou mantendo a razão acima da emoção, seria ótimo se você pudesse fazer o mesmo.
Eu olho para a minha mãe. Ela me olha de volta por um instante e logo depois desvia o olhar, sentando-se novamente. Como assim eles vão deixar meu pai lá só por causa de uma maldição? Os deuses poderiam atacar Prometeu ao mesmo tempo, acabando com eles, mas eles vão deixar meu pai preso onde está por causa de fogo?
Quando eu vejo minha mãe sentando-se novamente, em silêncio, uma ideia passa pela minha cabeça e eu ajo antes de pensar:
— Qualquer um… — eu digo com dificuldade, só no meio da frase interrompida percebendo o que eu estava fazendo. As outras palavras se esforçam para sair da minha garganta, e por pouco eu consigo pronunciá-las. — Pode ficar n-na mal-maldição?
Zeus me encara da mesma forma que encarava minha mãe.
— O único pré-requisito é ter feito alguma coisa ruim ou pelo menos achar que tenha feito. O que importa é que você sinta que deve ser punido. — Zeus me responde. — Foi o que aconteceu com o Tristan, embora eu não saiba o que exatamente ele acredita que fez.
Eu abaixo a mão e volto aos meus pensamentos. Caso tudo falhe, eu não hesitaria em tomar o lugar dele. Ele certamente arranjaria alguma forma de me soltar, e ele seria muito mais útil aqui fora do que eu. Talvez, se eu fizer isso, as pessoas não vão me odiar, nem a Alice.
— Agora que tudo está esclarecido, seguiremos discutindo sobre a guerra. Precisaremos de todos vocês para lidar com o que está por vir. — Zeus fica de pé e põe as mãos em suas costas. — Nós do Olimpo priorizaremos usar nossos recursos a favor de vocês e de garantir qualquer vitória na futura guerra.
— Eu gostaria de agradecer aos herois. De coração, muito obrigado pelo que fizeram. — Poseidon interrompe ela e nos olha com um grande sorriso. — Eu sou eternamente grato a vocês. Para o que precisarem, podem contar comigo.
Dante levanta seu dedão para Poseidon e Briar faz o mesmo. Eu apenas aceno com a cabeça, desconfortável.
— Ele parece muito com o Alexandre.
Briar sussurra para Dante.
— Ele é o pai do Alexandre.
Dante responde enquanto segura sua risada.
— Poseidon, se as interrupções continuarem acontecendo, serei forçada a tomar alguma medida disciplinar. — Zeus encara Poseidon, que dá de ombros e sorri. — Bem, por enquanto essa reunião será finalizada. Todos estão dispensados, e vocês, herois, aproveitem o verão. Vocês talvez não tenham outra oportunidade.
A maioria dos deuses desaparece em um estalar de dedos. Dionísio, Deméter e Hefesto vão embora sem dizer mais nada, e eu imagino que Hefesto, dentre os Olimpianos, deve ser um dos mais frustrados pela situação. Seu poder estar sendo tomado por um inimigo deve ser uma péssima sensação.
Vindo na nossa direção rapidamente, Ares se aproxima de Dante e Briar e puxa os dois para um abraço apertado, até mesmo sufocando Dante com tanta força. Ao final do abraço, ela empurra Dante, põe os mãos no ombro da Briar e diz:
— Filha, eu realmente estava errada sobre você.
Briar olha para o lado e cora.
— Ainda tenho muito a fazer, mãe.
— N-não, você foi muito bem. — Ares cruza os braços e tenta soar séria, embora sua voz esteja alegre demais para conter. — Eu tenho um presente pra vocês. Sei que não conserta tudo, mas é um bom primeiro passo, eu acho.
Ela bate uma palma. Em sua mão direita uma gosma preta aparece. Ela joga a gosma na mão de Briar, que segura e pergunta confusa:
— O que é isso?
— É a Bia. — Ares responde. — Banho de sangue.
A gosma começa a se espalhar pelo braço de Briar, subindo até seus ombros e se esticando para formar um sobretudo preto nela. A garota olha para seus braços com os olhos arregalados.
— Que legal! — ela passa a mão pelo sobretudo. — Isso é demais!
— Não tem de quê. Foi uma coisinha bem especial que consegui em uma luta. — a deusa ergue o objeto que apareceu ao seu lado, uma caixa gigante, e abre um sorriso. — Espero que goste. E pra você, Moicano, tem isso aqui.
Ela põe a caixa ao lado de Dante, indicando para que ele abra. Ele olha para ela e para a caixa várias vezes, perguntando incerto:
— Tem certeza?
— Claro, moleque, abre isso logo. — Dante abre a caixa. Dentro dela havia uma espada imensa, com uma lâmina branca e detalhes dourados e azuis. — Gostou? Eu não sei muito sobre essa espada, só o nome dela. É a Lâmina do Olimpo, acho que faz seu estilo.
Enquanto os dois se divertiam com seus presentes, Ares aumenta ainda mais seu sorriso e se vira de costas para ir embora. Antes que ela se afaste, no entanto, Dante diz:
— Eu espero que esse seja o primeiro passo, de verdade. — ele soa contente. — Obrigado por nos dar essa chance.
— Claro, claro, vejo vocês depois.
Ares faz o símbolo do rock e desaparece em chamas carmesim. Ao mesmo tempo em que eles conversavam, Kaizer recebia uma caixa com um símbolo de um Delta de seus pais, que disseram que era um objeto que Atena havia conseguido de Dédalo quando ela era um pouco mais nova que Kaizer é. Aparentemente, era um notebook que tinha todo o conhecimento dela e de Dédalo, e já que ela era a deusa da sabedoria, ela não precisaria mais disso.
Depois dos três se abraçarem, Poseidon e Atena vão embora também. Dante, Briar e Kaizer se despedem de mim e saem do palácio, seguindo minha mãe, que para apenas para me dar um beijo na testa e dizer: “ daqui a pouco conversamos”. Sem eles, só resta eu e Hades no palácio. Pela primeira vez ele se move, ficando de pé e passando pelo meu lado, indicando com a cabeça para eu seguí-lo. Eu me pergunto se deveria mesmo fazer isso, já que provavelmente seria uma conversa longa e chata.
Ainda assim, eu segui. Talvez por minha curiosidade tomar o melhor de mim ou por alguma outra razão, não sei.
Nós passamos por uma das portas do Olimpo e chegamos no que parecia ser uma varanda. Ela dava visão para todo o monte Olimpo. Suas ruas e construções emitem um brilho sagrado, como se estivéssemos vendo uma escultura em tamanho colossal. Era um lugar bonito e claramente importante, embora parecesse só isso: bonito, eu não conseguia imaginar viver nesse lugar, mas centenas de criaturas mágicas, deuses menores e seres espirituais discordavam de mim, caminhando alegremente nesse paraíso de mármore.
Para falar a verdade, eu não ligava muito. Eu não pretendia ficar aqui, nem ao menos queria voltar aqui mais vezes. Não parecia certo, é como se o ambiente estivesse me rejeitando, puxando-me para baixo como se quisesse que eu afundasse no chão. Esse não é o meu lugar, e o Olimpo claramente queria que eu sentisse isso na pele.
— Você cresceu muito desde a última vez que te vi. — Hades quebra o silêncio, apoiando-se no parapeito e encarando o horizonte. Eu apenas olho para ele em silêncio, confusa, me perguntando se… — Você deve estar se perguntando se eu já te vi antes, a resposta é sim. Não nessa forma, claro. Às vezes eu era um corvo, outras um vendedor de cachorro quente, só para ver como você estava.
— Você podia só falar comigo.
Eu respondo, me perguntando quantas vezes naquela vida as coisas que vi eram na verdade Hades disfarçado.
— Sendo sincero. — ele solta uma risada falsa. — Eu não sabia se você iria querer falar comigo.
Ele soava envergonhado, da mesma forma que eu ficava quando sentia que tinha feito besteira e que meus pais iriam reclamar comigo. Isso não faz sentido, ele não devia estar se importando.
— Por que?
— Mais do que ninguém, eu sei como é guardar rancor de uma pessoa e deixar isso florescer por muito tempo. Eu acho que é natural que você sinta isso por mim, mas é algo que estou em paz sabendo. — ele me olha nos olhos. — Eu deixei você com a Reyna e o Tristan por um motivo, eu confio neles, e claramente eles te deram uma vida que eu nunca poderia dar. O que mais eu poderia pedir?
Nada disso fazia sentido. Como assim rancor? Eu não consigo sentir rancor dele, eu não sinto nada por ele. Como uma pessoa que não estava na minha vida deveria significar algo? Isso não fazia sentido, é muito… confuso.
— Rancor?
Eu pergunto, buscando mais respostas dele.
— Você sabe o que é, eu sei que sabe, só não conseguiu botar isso em palavras ainda. — sua voz parece triste, e ainda envergonhada. — É um sentimento ruim, maligno, ele nasce no seu estômago e cresce cada vez mais, espalhando-se por suas veias como veneno, corrompendo você e fazendo você sentir nojo de si mesmo. Te lembra algo?
Eu gostaria dizer que não, mas lembra. Eu senti isso uma única vez e estou sentindo desde então. Eu aceno com a cabeça, concordando.
— Eu não espero que você me perdoe, mas quero que me entenda. Eu não te mantive longe por não me importar com você, e sim por motivos maiores. Desde que você nasceu, coisas estranhas aconteceram no submundo. Os mortos se revoltaram no seu primeiro suspiro, tentaram invadir o meu palácio, enfurecidos. Eu só conseguia fazer isso com eles se me concentrasse muito, usando um anel que focava meu poder. Ainda assim, você nasceu fazendo isso naturalmente e em uma escala nunca antes vista. — ele se vira para ficar de frente para mim. — Seu contato com o submundo gera um efeito incontrolável nos mortos, e eu sinto que isso é culpa minha. Por conta disso, o submundo não é um lugar seguro para você, então decidi te deixar em um lugar onde você estaria protegida.
Eu não fazia ideia de como processar isso. Os mortos se rebelaram quando eu nasci? Por que? E por que isso seria culpa de Hades? E como ele se importava durante todo esse tempo? Talvez fosse mentira. Espera, por que ele mentiria? É, talvez ele só queira me afastar, isso faz sentido. Não, mas então por que ele me chamaria para conversar? Era só continuar em silêncio. Não, não, eu não consigo… eu não consigo aceitar.
E o submundo, como não pode ser um lugar seguro? Os livros diziam que era uma fortaleza impenetrável, ninguém poderia invadi-la. Era o lugar perfeito para estar sozinha, eu preciso ficar sozinha.
— Eu não posso voltar?
Pergunto, tentando controlar minha respiração. Hades respira fundo também, me olhando de forma enigmática enquanto pensa antes de responder.
— Não por muito tempo. Você ficou mais velha, mais forte. É impossível saber o que você vai causar no submundo. — ele responde e eu sinto mais uma possibilidade de fugir se fechando diante de mim. Porém, ele continua: — Mas, na época que os seus poderes saíram de controle, eu pedi ajuda do meu mari-, de Apolo. Nós usamos a magia dele para conter a sua com isso.
Ele aponta para o meu fone de ouvido.
— A música te mantém segura. — ele sorri. — Talvez consiga entrar no submundo com isso.
Essa era a única coisa que fazia sentido. Eu sempre me senti segura ouvindo música, e é um alívio saber que isso é mais verdade do que pensei. O que me impressiona, na verdade, é uma sensação que surge em mim que não havia surgido antes. Eu queria conversar, dizer o que sinto com palavras de verdade. Por que logo com ele?
— Eu e-estou… perdida. — eu olho para as ruas do Olimpo. — A-Alice disse coisas… ruins. Verdades. Eu não quero lutar, nem ser… heroi.
— A Alice, né? Já ouvi falar muito dela. Alessandra, eu sei que você é capaz de manter a cabeça fria, mas pelo que eu sei, ela não consegue. Vocês duas estão passando pela mesma coisa, mesmo que separadas, e só vocês podem impedir uma a outra de fazer alguma besteira, pois só vocês duas sabem o que a outra está sentindo. — ele se abaixa para ficar na altura dos meus olhos. — Na sua idade eu tinha uma irmã, a Bianca. Ela era tudo para mim, porém acabou saindo em uma missão com Poseidon, Atena e Zeus. Os de agora, no caso, e ela acabou morrendo. Eu deixei aquele sentimento ruim que falei tomar conta de mim, culpei meus amigos e fugi para ficar sozinho. Eu fiz de tudo para resolver as coisas sem a ajuda de mais ninguém e acabei colocando todos em risco. Eu só estou aqui hoje porque me salvaram, e todo mundo precisa de uma pessoa para nos salvar. Talvez essa pessoa para você seja Alice, e para ela seja você.
— Eu tenho q-que ir atrás… dela?
— Se você tem um pouco de carinho por ela, seria bom para vocês duas. O que eu quero dizer é que fugir não é a escolha certa. As pessoas não olham para você do jeito que você pensa, isso é coisa da sua cabeça, e no isolamento essas vozes ruins dos nossos pensamentos falam mais alto que a razão.
Mais uma vez, fazia sentido. Eu não gostaria de admitir, mas meu pai sempre dizia a mesma coisa. Fugir não é a escolha certa. É só que… eu queria muito tomar a escolha errada agora. Infelizmente, eu não posso, principalmente por querer salvar meu pai. Eu tenho que salvar ele mesmo que esteja me sentindo assim.
Eu me encosto no parapeito também, mas logo coloco as mãos em minha jaqueta, pois o ambiente estava tão frio que eu havia começado a tremer.
— Com frio? — Hades pergunta e eu concordo com a cabeça. — Perdão, acabo esquecendo de controlar isso.
Ele bota as mãos em meus ombros, e de repente uma jaqueta se forma ao meu redor, me cobrindo. Era uma jaqueta de aviador, tingida em um tom marrom e com pelagem na área do pescoço e dos ombros.
— Essa jaqueta era um amuleto da sorte pra mim, antigamente. Ela acabou sendo destroçada, mas eu dei um jeito de trazê-la de volta e mantive como lembrança. — ele ajeita a jaqueta em mim. — Acho certo ela ser sua agora. Você precisa mais do que eu, e é bom deixá-la na ativa mais uma vez. E… olha, eu sei que você não me conhece e não confia em mim, mas você fez um bom trabalho, você deveria se orgulhar.
Sobre a jaqueta: eu gostei. Era confortável, relaxante, me fazia ficar um pouco mais sonolenta. Sobre o comentário final: eu não consigo acreditar nisso. Briar e Dante lutaram contra todos os nossos inimigos, Kaizer nos guiou a todo momento. Eu simplesmente estive lá, me esforçando para não atrapalhar ninguém.
— Se serve de algo, você é muito mais inteligente do que eu era na sua idade. E você tem o meu sangue, você é mais forte que todos os outros, só não sabe disso ainda, e eu estou disposto a arriscar levar você para o submundo se quiser. — ele oferece. — E se sua mãe deixar, claro. Eu tenho uma irmã mais nova que resgatei depois que virei Hades. Ela mora no palácio também, pode te ajudar com uma coisa ou outra sobre seus poderes.
Não parecia uma má ideia. Aprender sobre os meus poderes me faria ficar mais útil, mais forte que nem preciso ficar. E depois que eu salvar o meu pai eu posso parar, ficar em casa e não atrapalhar mais ninguém. Parecia um bom plano.
— Vai ser bom ter uma cara nova lá, você vai gostar do pessoal.
— Acho que sim. — respondo, ainda incerta sobre o que exatamente encontrarei lá. — Obrigado pela jaqueta.
— Por nada, e não esquece disso: aquelas pessoas com você, o do moicano, a olhuda e o quatro olhos. Eles parecem gostar muito de você. Mantenha eles ao seu lado custe o que custar, e sobre os que não gostam… isso é normal. A maioria dos semideuses tem medo da gente por conta da nossa aura de morte, o que importa são os que não se afastam. — Hades soava ansioso, como se estivesse tentando o máximo possível não falar algo errado. — Ao final do verão, quando você descansar e aproveitar com seus amigos, pode ficar um tempo com a gente no submundo.
Eu levanto um dedão. Hades olha, sorri e faz o mesmo, desaparecendo nas sombras enquanto se despede com um aceno. Eu olho para o horizonte mais uma vez, tentando encontrar alguma coisa que me faça querer voltar aqui. Felizmente, não havia nada, então eu poderia ir embora sem preocupações, seguindo o caminho que meus amigos seguiram para sair com minha mãe, que por sua vez estava me esperando no caminho.
Ela estende a mão para mim e eu seguro, e logo nós andamos de mãos dadas até a sua carruagem. No caminho ela fala:
— Vi que ganhou um presente do Nico. — ela sorri. — Fico muito feliz que vocês se deram bem.
— É uma jaqueta velha. — eu respondo. — É boa, confortável.
— Não é tão velha… tá, é bem velha sim. — minha mãe ri. — Enfim, sobre o que vocês conversaram?
Eu conhecia o jeito que ela estava me olhando. Era o mesmo jeito que ela me olhava depois de suas tentativas de me fazer ter amigos durante minha infância. Ela estava preocupada.
— Submundo e… caçar alguém.
Eu resumo as partes mais importantes da conversa. Bem, eu poderia falar sobre a conversa sobre sentimentos ruins e afins, mas acho que demoraria tempo demais. Minha vontade de falar já havia sido esgotada depois de duas frases com Hades, e eu não sei muito bem o porquê. Eu sempre fui assim, talvez seja culpa da maldição.
— Caçar alguém?
Ela soa confusa.
— É?
— Eu sei que seu pai falou que lutar é que nem caçar, Alessa, mas ele estava errado, não é bem assim que…
— É só achar, mãe, não lutar.
Eu a interrompi quando percebi que ela havia entendido errado o meu comentário. Bem, eu espero que não envolva a parte de lutar. Eu não me sentiria bem machucando a Alice, se é que eu conseguiria fazer isso.
— Ah, a Alice. — ela suspira, aliviada, e eu confirmo com um aceno. — Ela é igual ao seu pai, né? Eu mal consigo acreditar nisso. Mas sobre você, eu estou orgulhosa. Você conheceu pessoas novas, fez amigos e eu nunca vi você falando tanto. Eu acho que você merece um presente.
De novo: eu não fiz nada, mas eu gosto de presentes, então não vou tentar debater.
Minha mãe me entrega um presente embrulhado, fechado com um laço que eu não fazia ideia de como desatar. Vez ou outra ela fazia isso, parecia ser algum tipo de costume de sua época sendo uma caçadora. Vendo isso, eu encaro o presente em silêncio.
— Não vai abrir?
Ela pergunta.
— Embrulho… — eu aponto. — Não gosto de rasgar.
Rindo, ela me ajuda a abrir o presente sem destruir o embrulho. Dentro eu vejo uma tiara prateada idêntica a que ela usava, e eu logo abri um sorriso de alegria ao perceber o que era. Era a mesma tiara das caçadoras. Eu sempre quis ser uma caçadora. Ela coloca a tiara na minha testa com cuidado e diz:
— Ficou linda em você. — ela sorri. — Vai te proteger quando eu estiver longe.
— Mas você está sempre de olho…?
Eu pergunto, confusa. Se eu pudesse ver a lua, minha mãe podia me ver. Minha vida inteira eu soube disso, então eu nunca me preocupei com estar distante dela.
— Eu sei, é só para você se sentir perto de mim a qualquer momento.
— Valeu.
Eu agradeço. Era um ótimo presente, e até combinava com a jaqueta. Além do mais, eu conseguia sentir magia emanando da tiara. Com certeza não era qualquer acessório, mas acredito que vou saber exatamente o que ela fazia na hora certa.
— Você merece. Agora é hora de voltar para o acampamento, imagino que eles estejam se preparando para fazer uma fogueira. — nós continuamos andando. — Você não sabe disso, mas é uma tradição fazer isso nessa época do ano. Você deveria participar.
Eu suspiro.
— Posso… casa?
— Não. — ela responde. — Só depois da festa. Seus amigos vão ficar tristes se você não participar.
Ela não diz mais nada até chegarmos na carruagem de prata, onde os outros estavam olhando para os seus presentes com os olhos brilhando. Eu não estava com a mínima vontade de ir para essa fogueira, mas minha mãe mandou e eu acabei de receber um presente, então não posso reclamar. Ao me ver, Briar diz:
— Caramba, Alessa, você tá linda!
Eu respondo levantando dois dedões e apontando para o sobretudo dela. Ela repete o meu gesto, sorrindo de orelha a orelha enquanto brinca com a roupa, alegre.
Do outro lado estava Kaizer, mexendo no notebook com seus olhos semicerrados, claramente focado na tarefa. Na tela do notebook estavam vários protótipos para armas, incluindo a ideia que eu contei para ele na nossa viagem até o monte. Parecia ainda melhor do que antes, e eu até cheguei a me impressionar com a evolução na qualidade.
— Ai, Kaizer, e a espada moto? — Dante pergunta ao se colocar entre eu e Kaizer. — Ainda vai usar? Estou aceitando armas novas.
Kaizer olha para a Lâmina do Olimpo.
— Você acabou de ganhar uma.
— Mais uma nunca é demais!
Dante responde e logo volta a se sentar. Eu também me acomodo, sentindo-me relaxada assim que me sento. É como se todo o meu cansaço se acumulasse de uma vez só e explodisse o meu corpo. Meus olhos reviram de sono, e enquanto eu escondo minhas mãos e meu pescoço na jaqueta, eu sinto minha consciência aos poucos se esvaindo. Algumas conversas vão e vem pelos meus ouvidos: algo sobre o machado de Dante ter pertencido a um filho de Ares de antigamente, sobre o notebook do Kaizer ter todo tipo de informação, esse tipo de conversa agradável que eu não conseguia ter agora.
Talvez algum dia eu possa conversar com eles como eles conversam uns com os outros. Parece ser mais simples, até mesmo agradável. Até lá eu teria que me contentar com estar presente, e se tudo der certo, ser lembrada.
Briar também menciona Arthur, dizendo que eles deveriam encontrar uma forma de entrar no labirinto para salvá-lo. Kaizer diz que o notebook não tinha o caminho e que precisaríamos de uma bússola. Infelizmente, a única registrada estava com o grupo dos outros semideuses. Ainda assim, os três mencionam pedir a ajuda de Atena ou de Ares para salvá-los. Eu não me incomodaria de ajudar, afinal, é o mínimo que posso fazer. Porém, por agora, eu não conseguia pensar em mais nada, e quando menos percebo, já estava dormindo.
Meus olhos se abrem assim que eu fico inconsciente, e eu não demoro nem um segundo para perceber que estava em um sonho. O ambiente ao meu redor era completamente preto, como se eu estivesse imersa em sombras — exceto por duas figuras na distância. Eu tento me aproximar, mas logo percebo que minhas pernas estavam presas no chão.
Mesmo distante eu consigo enxergar quem era: uma delas era Zack, ainda ferido e se apoiando em sua arma. Em sua frente estava uma outra pessoa que usava uma máscara e empunhava um cajado. Em uma voz que ecoava e se partia ao ponto de ficar quase inaudível, Zack diz:
— Tenho que te agradecer pela magia, funcionou muito bem. — ele ri. — Mas eu imagino que esse seja só o início do plano, não é?
Sem respondê-lo, a figura mascarada vira para mim e olha na minha direção. Eu sinto o meu coração congelar e o meu corpo afundando nas sombras ao meu pé, e enquanto eu mergulho, ouço uma voz sem conseguir discernir as palavras que ela dizia.
Uma coisa eu tinha certeza: quem quer que essa pessoa seja, ela é importante.