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MADAME CRAVO
por: vanillee
São pormenores estúpidos que deixam-no vazio e triste; as entranhas reviram, ansiosas, quando ele vê algo no chão de tacos do quarto: um relógio de pulso, antiquado e delicado, caído sem querer do guarda-roupas, bem em cima do pé descalço dele. Deveria ser um detalhe qualquer e, como todas as coisas que não importam tanto, Jongin esticaria a mão e guardaria o objeto de maneira corriqueira, depois de xingá-lo pela dor aguda causada no dedão. A memória daquele relógio, todavia, dói muito mais do que o pé que amorteceu a queda… Porque liga-o à Nancy. De certa forma, ela sempre está por perto; sobretudo, em dias nos quais o calor queima mais do que deveria. O avesso da pele dele é exposto: suas fraquezas, arranhões. A mão afunda na carne rubra, e dói; de novo, dói.
Lá embaixo, na cozinha, alguém briga alto e as vozes ecoam até cá em cima. Esse dinheiro é meu! Meu! Que sou mãe, e carreguei o pobre miserável no ventre — Jongin reconheceu a voz agitada de Kim Misuk, e quase pôde imaginá-la com o indicador virado para cima, o nariz arrebitado. Em seguida, a resposta: Megera! É isso que você é. A herança valiosa e cheia de luxos do morto é uma ruína; um poço manchado de egoísmos. Hoje, Jongin completa dezenove anos. Também, é aniversário da morte de Kim Jae, famoso político de origem coreana o qual estabeleceu vida e carreira no Brasil. Igualmente, aniversário do dia em que Jongin veio parar neste casarão, ao descobrir-se filho do político. Alguns segredos saem à luz após a morte; alguns segredos também são ruínas e poços manchados.
É verão de 1994, num interior pacato. Jongin odeia janeiro.
Num dos quartos, um MPB chiado tocava distante, a voz suave de Joana Doh, viúva do falecido, acompanhava a melodia. Jongin, entretanto, percebe Nancy em toda parte — nos ponteiros parados do relógio de pulso, nas canções brasileiras ou na fotografia que, embora goste de fingir que não, está lá, enfurnada no mesmo guarda-roupas de onde o relógio caiu. Odeia janeiro. Frequentemente, se pergunta onde Nancy está agora. Faz quatro longos anos desde que Nancy sumiu da vida dele. Faz quatro anos que ele finge que este casarão sempre foi seu — mesmo que perceba as bocas torcidas na sua direção quando passeia pelos cômodos vastos, como se fosse um rato indesejado, invasivo.
Um trovão repentino cortou o céu.
Avistou, a atenção tomada pelo som tremido, as nuvens cinza escuro lá fora, roubando o céu azul da manhã. A ventania bateu uma das janelas do casarão num volume alto, trouxe junto a si o cheiro antecipado da tempestade, bagunçou os cabelos dele. Olha a roupa no varal!, gritou Piedade — uma das funcionárias dali —, e escutou os passos firmes dela correrem pelo assoalho. Meio incerto, agarrou o relógio do chão e engatinhou de quatro até a porta do próprio quarto, colocando apenas a cabeça para fora. Encontrou o rosto de Joana no outro aposento, na mesma posição (meio ajoelhada, meio de quatro) curiosa, a escutar a briga. Sorriram um para o outro, cúmplices. E ali, quando a chuva despencou e as vozes gritavam abafadas, decidiu, meramente, esquecer um pouco. De tudo um pouco. Inclusive, de Nancy, a dona deste relógio frio e, tantos anos depois, inútil para dizer as horas; diz mais sobre angústias do que horas.
— Quando vocês vão? — Jongin perguntou.
— Hum?
— Pro cemitério.
— Lá pra tarde. A Misuk quer rezar uma missa pra ele. — Segundos depois, ela caçoou: — Será que ele escuta orações do inferno?
Jongin gargalhou numa careta engraçada. Joana pediu silêncio com o indicador nos lábios; contudo, sorria. Ela é a única coisa boa desta casa, Jongin sempre costuma ponderar a sua doçura, em um pensamento carinhoso.
— Queria ir junto… posso? — sussurrou ele.
Joana encarou-o, quieta.
— Ela não vai gostar nada disso… — respondeu, enfim, noutro sussurro.
— Só quero ver ele de perto. — Embora nunca tenha o visto em vida. — Ela não gosta de mim desde sempre… — afirmou. — Como se isso fizesse diferença nessa casa — concluiu.
— Não sei não, Jongin… Ela tá bem nervosa hoje. — Apontou com o queixo na direção das longas escadas amadeiradas, de onde vinha a briga lá embaixo.
— Por favor, Joaninha — implorou. — Olha. — Levantou o relógio com uma mão, ainda apoiando-se no chão com a outra. — Faz quatro anos que não vejo isso aqui. Só pode ser um sinal…
Dali de cima, escutaram os pés de Misuk subirem as escadas, o barulho único das suas juntas estalando a cada degrau. Interrompidos, despediram-se com olhares e, apressados, voltaram as cabeças para dentro dos quartos e fecharam as portas.
Jongin suspirou, apertando o relógio contra os dedos, sentindo a garoa fina trazida pelo vento arrepiar sua pele e molhar parcamente a cortina, que esvoaçava com a porta aberta da pequena varanda. Ainda conseguia escutar a bossa nova, melodiosa, no radinho de pilha de Joana, ou Misuk reclamando sozinha no terceiro e último quarto do segundo andar.
Naquele dia miúdo de janeiro, doce e amargo, a tarde chuvosa enfim caiu.
Não foi difícil convencê-la: apesar dos dissabores, Misuk respeitava Joana Doh; bastou um tom de voz firme para aquietá-la e, além disso, eu que vou dirigir na ida, eu quem escolho os passageiros!, e ainda acrescentou: é direito dele e não falamos mais disso. Embora Misuk tenha aceitado, não ousou olhar sua carranca encarando-o pelo espelho retrovisor interno do carro. Quase não ousou respirar alto demais — esforçou-se muito para segurar um pum ansioso.
A estrada tranquila tornava-se cada vez mais deserta ao aproximarem-se do destino. Era como arraigar um bocado de morte na carne fatigada, punida por ferimentos — um pouco de vida, também. Morte e vida. Morte e vida.
O túmulo de Kim Jae descansava sob uma das árvores enormes dum cemitério caro. Dizem que ele morreu de infarto, aos quarenta e cinco; na época, Jongin pouco se importou com a causa. Mesmo hoje não se importa tanto em como ele partiu. Adentrando o portão meio enferrujado, no entanto, ao entrever variadas estátuas, cruzes abundantes e o cheiro típico de mato que tem nesses lugares, uma dúvida (ou mais de uma) encheu sua mente: Nancy está viva? Como teria sido a sua morte? — calma ou cheia de sofrimentos? Não quer pensar nisso agora; não ainda. Desviou o olhar de tantos túmulos, passou a mão nos cabelos. Pisou primeiro com o pé direito, com um pouco de superstição e, com certeza na volta, um certo medo da terra moribunda grudada no corpo ou nos sapatos — veja bem, talvez houvesse alguma maldição em terras enlameadas de cemitérios. Definitivamente.
Inspirou. Expirou. O ramalhete de flores que segurava entre a mão fechada já tinha os cabos verdes todos suados (pobre deles), escorregando na pele. Fechou-os com mais força na palma.
Jongin veio numa caminhada lenta, muito certo de que, ali, deixaria uma parte do seu passado para trás: quieto, enfim esquecido na mente; enterrado feito o cadáver que tinha de ser. Sob o céu nublado do cemitério, aquela árvore bonita e viçosa acima do túmulo abriga-o parcialmente do tempo, suas folhagens longas e escuras envergadas como se fossem cabanas; a água da chuva — agora já amena — goteja nas folhas num som calmo e, mesmo sendo verão, ele sente frio. Subiu no ar, sereno, o cheiro doce de flores molhadas pela chuva, e ele fixou as pupilas nas fotos que descansavam no mármore. Parado e em completo silêncio, gravou na memória os traços asiáticos em preto e branco — na maioria das fotos, ele sorria, formando rugas ao redor dos olhos. Houve, a princípio, certa curiosidade — aquele homem era seu pai; seu pai, quem um dia galanteou Nancy com joias e a ideia de uma viagem para Copacabana, entre as vielas dum prostíbulo no centro, longe deste interior pacato. Vagabundo. Não quer reprimir o xingamento. Vagabundo.
Uma vertigem lhe tomou. Um leve formigamento comum.
“Deita sob a terra um bom homem, aquele que mudou o mundo. Aos bons, toda a nossa saudade. Descanse em paz. Kim Jae, 1945 — 1990.”
Como se ele fosse um deus ou um diabo, o epitáfio estava grafado na lápide. Lágrimas escorreram do rosto de Jongin. Assim, de repente. Sem muito aviso, sem cólera: pacíficas, em vez disso. Levou a mão livre sobre a bochecha, incrédulo ao não superar o abandono. As solas dos sapatos sujas de lama incomodaram o âmago supersticioso; chorou, realmente, porque era maldição. Vagabundo. Odeia janeiro.
— A missa já já vai começar. Vão fazer aqui mesmo, no ar livre. Terminou sua despedida, Nini? — A mão suave de Joana Doh pousou no seu ombro. Olhou para ela, meio de lado, meio para trás. Ela arregalou levemente os olhos ao vê-lo com lágrimas.
Sequer escutou o ruído dos passos distraídos dela; o olhar dele, dilatado e vertiginoso, tão compenetrado no mármore ou nas fotos preto e branco dos quadros estreitos, não deixou que prestasse atenção em nada além.
— Não sei o que me deu — adiantou, negando com a cabeça.
Um pouco paralisada pela surpresa, somente segundos depois ela continuou: — É normal. Não sinta vergonha. — Acariciou a bochecha dele, limpando com o polegar o rastro do choro. — Vamos esperar no carro?
Soprou o vento, chacoalhando os cabelos curtos dele e o chanel ondulado dela. Jongin depositou, enfim, o ramalhete de flores que segurava ao lado de uma das fotos.
— Uhum — concordou.
Os sapatos sujos de Jongin crepitavam entre o caminho de pedras, assim como os saltos baixos de Joana, igualmente imundos de barro. Não há nada para dizer, a mão dela apertando a dele já diz coisas demais. Não resta mais nada o que fazer, encarar o túmulo foi suficiente; deixaria Kim Jae e toda a sua politicagem para trás. Todo o abandono, toda a falta de ajuda (mesmo que tivesse dinheiro suficiente para dar): que morram e queimem. Que vire um cadáver não tão assustador a partir de agora. Jongin e Joana deixaram os sapatos enlameados para fora, sobre a grama, e entraram somente de meias dentro do carro aconchegante — um Omega CD vermelho exalando a couro limpo.
— Sua meia rasgou de novo — disse Jongin, deslizando os dedos na perna de Joana, onde um rasgo trilhava a meia fina branca. — Quando a gente chegar em casa, vou passar ela na máquina de costura.
— Vai ficar um trapo — caçoou. — Sossegue, amanhã vou passar na cidade e compro outra. Aliás, Nini, tenho um pedido de trabalho pra você, lá da discoteca. Com cartinha bonita e tudo.
— Jura?!
— Juro. ‘Tá na minha gaveta de calcinhas. Lá em casa, mostro pra você. Acho que vai adorar costurar as roupas dela.
— Dela quem? Eu sou curioso!
— Madame cravo.
O queixo de Jongin despencou: — Quê? Ela é super famosa! Tirou uma mesa de tarot de marselha até pro prefeito! Meu Deus, Joana… Você sabe que eu tenho, tipo, uma paquera enorme e platônica nela?!
— Eu sei. — Meneou positivo com a cabeça. — Se você aceitar ser o estilista exclusivo dela, quem sabe, ela leia sua mão um dia. Além de pagar super bem. — Fez sinal de dinheiro ao esfregar o indicador e o polegar.
— Deus me livre. Vai ver só coisa ruim no meu futuro.
Risadinhas bobas.
Silêncio.
— Eu e ele somos iguaizinhos… — murmurou.
Percebendo a careta desgostosa em Jongin, Joana puxou com força uma das orelhas dele. Em seguida, abraçou-o com ainda mais vontade.
— Ai! — reclamou, manhoso.
— Só na aparência. Deixa de besteira. Jae e você não são nada iguais.
Ele sorriu com os lábios, um sorriso pequeno, aproveitando do abraço acalentado. Entretanto, um vazio severo no estômago incomodava-o, ao lembrar e relembrar de alguém tão parecido consigo — alguém tão distante, similarmente. Espremeu o corpo contra o dela na porta do carro e, cansado, deitou a cabeça no ombro perfumado. Na sua adolescência, Jongin nunca havia percebido, mas hoje em dia, ao encarar as íris castanhas caramelo de Joana Doh, assustava-se com a juventude: apenas vinte e quatro anos. Apenas vinte quando ele chegou ali. Quase não tinham tanta diferença de idade. Certa vez, ela disse que o casamento com Kim Jae durara somente no primeiro ano; depois, virara só uma fachada, fosse lá o que isso significasse para ela. O político a conheceu após divorciar-se, em um bar majoritariamente frequentado por estrangeiros, e sentiu-se familiarizado com a descendência coreana-brasileira dela. Assim, dizia ela, ao dividirem um drinque, o romance deu-se rápido e casou-se com ele cinco meses depois, com dezoito para dezenove anos.
Fui uma estúpida, dizia Joana. No entanto, não queria voltar para a casa dos pais, que não a aceitavam como mulher e insistiam em chamá-la de Kyungsoo — o nome morto. Kim Jae tinha um filho do primeiro casamento: Kim Baekhyun, atualmente maior de idade e dono de uma vinícola há mais ou menos duas horas de distância. Sehun — o irmão mais novo de Jongin — mudou-se com Baekhyun para lá já faz um ano. É um pouco solitário agora, tem de admitir: cuidou de Sehun por todo esse tempo; não tê-lo mais na sua rotina causa certa estranheza. Deitado no ombro de Joana, muitas dessas memórias vêm à tona. A rádio do carro tocava músicas e, embalado pelo som da chuva contra a lataria e pelo perfume dela, adormeceu.
Tudo começou muito antes: era janeiro de 1990. Talvez, tenha começado até mesmo outrora, quando ele nem havia nascido. Jongin recordava somente do dia exato em que veio parar naquela casa grande — e de todos os dias depois disso —, cheio de flores coloridas e do matagal verde coberto de vagalumes ao cair das noites.
Nancy havia sumido há três meses, na época. Manoel (o irmão mais velho dela) não era dos mais responsáveis, todavia mantinha Jongin e Sehun com a barriga cheia e uma cama onde dormir. Quando completou quinze anos, Jongin meteu-se no quarto de Nancy, fungou suas roupas cheio de saudade, guardou nos bolsos da bermuda um relógio antigo e uma fotografia pequena e impressa — dele, dela e de Sehun, numa festinha de aniversário infantil. Ela vinha, antes do sumiço, com aquele riso puritano falso, todos os dias pela manhã, voltando à casa fedendo a conhaque ou gin (às vezes à cigarro), no mesmo instante em que os carros e suas buzinas bagunçavam a avenida matinal lá fora; ela vinha com aquele sorriso, até que não veio mais.
E, naquela mesma noite quente de 1990, os dias seguintes não foram mais os mesmos.
Desta vez, as lembranças são flashes não muito precisos: Manoel atendeu na porta da casa puída um advogado, ao lado de Piedade e Maria — uma outra funcionária do casarão. Houve, na época, certa gritaria, dois testes de DNA e a decisão da Justiça. Desde aquele dia, Manoel também sumiu e não lhe procurou mais. As funcionárias (Piedade e Maria) se aproximavam uma da outra e fofocavam: Que faremos agora?, dizia. Ah, por favor, Maria… colocar pra dentro de casa mais encrenca pra senhorita Doh e pra senhora Misuk? Aquele… Sem vergonha!, a outra respondia. Não fale do morto, que dá azar!, e faziam o sinal da cruz. Jongin odiava escutá-las e, por outro lado, preferia a fofoca do que os olhares duros dos advogados e juízes.
Especialmente por serem menores de idade e por, após a visita de uma assistente social, resultar-se muito claro qual era o lugar onde receberiam educação acima da média, comidas acima da média e camas macias acima da média, ficou muito fácil para o juiz decidir.
Misuk tinha uma carranca e uma voz nada amigável: “A partir de hoje, vocês vão morar conosco. Se roubarem da casa, serão expulsos. Se irritarem a senhorita Doh, serão expulsos. Sei que viveram na favela desde sempre, mas aqui tem de aprender a ser gente.”
Ele sempre foi gente — disso, ao menos, não tinha dúvidas, e ensinou Sehun a não ter dúvidas sobre sua dignidade também. Por graça divina, não foram separados um do outro; isto aliviou Jongin, que rezou para não acontecer o pior.
Desde o momento em que pisou naquele interior colorido, com Sehun agarrado na sua camiseta bem atrás, soube que não era querido — não era muito difícil adivinhar. Bastava prestar atenção: olhares, bocas, cochichos. Não dá pra acreditar… se metendo com putas do centro? Não dá pra acreditar… olha aí, no que deu, escutou Misuk dizer, um outro dia.
Quando viu Joana Doh pela primeira vez, entretanto, a manhã estava quente e límpida; a brisa do vento era agradável, balançando o vestido colorido de camponesa dela. Ela tinha uns olhos castanhos caramelo de mistério, mesmo que vistos de longe. Sentada numa cadeira de fios na varanda do seu quarto, aproveitava o tempo bom e o jardim colorido, lia um livro e olhava de soslaio os dois novos moradores brincarem com Baekhyun. Jongin, por outro lado, deixava a bola de futebol escapar do pé constantemente, porque estava ocupado demais distraído com o vestido colorido do segundo andar.
Joana sempre estava enfurnada nos seus aposentos ou na varanda, e Jongin sempre procurava-a, curioso, pelos cantos. Sua beleza, delicadeza, sua voz reverberando canções dentro dos cômodos fechados e a maneira como saía perfumada todas as noites, dizendo à Piedade para deixar a porta destrancada, pois não estava levando as chaves e cantaria a noite toda para os fracos de coração na discoteca da cidade — sempre com um sorriso meigo, alinhado, branco; perfeito. Após duas ou três semanas naquela casa, não haviam ainda trocado palavra alguma. Às vezes, Jongin engatinhava de quatro, escondido, bisbilhotando ela cantar ou maquiar-se ou colocar na cabeça um belo chapéu veranil, pronta para sentar na cadeira de fios da varanda.
Um dia, entretanto, o cachorro da família cavoucou e destruiu a plantação de girassóis do jardim. Misuk agarrou, furiosa, a orelha de Jongin, e veio arrastando-o até a porta de entrada do casarão: jogou-o para dentro, e ele caiu aos pés de um longo vestido verde claro, escutando atrás de si os gritos da megera — assim aprendeu com Ji-Eun, uma das tias de Kim Jae, sempre gritando como Misuk era uma megera biscateira — o ameaçarem. Ao olhar para cima, procurando a dona do vestido, deu de cara com Joana.
“Ah, meu Deus… Não faça isso com uma criança!” — Escutou-a falar pela primeira vez. Foi ali, malemá, que tudo começou entre ela e Jongin. E malemá porque, no dia seguinte, quando ela tentou conversar, ele tinha preso na garganta um bolo invisível de vômito e não conseguiu responder. Calado entrou na casa, calado permaneceu por meses. Ele estava acostumado ao abandono, mas não àquela voz gentil. Joana tentou de outra maneira: escreveu à lápis no caderno e empurrou-o na sua direção. Ele leu: Você é Jongin, certo? Eu sou Joana. Quer almoçar comigo na varanda hoje?
Jongin sorriu pequeno e, a bem da verdade, quase chorou. Respondeu: Sim.
Noutro dia, escreveu mais coisas: Não fui eu que destruiu os girassóis… foi o Peteco — ao lado do nome do bichinho, desenhou um vira-lata.
Joana encarou-o aturdida. Escreveu à lápis: Por que não disse nada?
Não consegui.
Pobre menino, pensou ela.
Você desenha bem. O Peteco ficou bonitinho. Quer desenhar os meus vestidos?
Sorriram. Jongin disse que sim.
A garganta fechada perdurou por muitos anos — inclusive, após atingir a maioridade. Com bem menos frequência após pegar intimidade com Joana, entretanto. Seus problemas de comunicação, todavia, foram um fantasma ainda maior quando Misuk decidiu colocá-lo em um colégio interno de prestígio, ao completar dezesseis anos — tudo por que o queria longe de Joana, de Baekhyun e da casa; então, um colégio com horários normais não serviria: ele ainda passaria tempo demais cruzando o seu caminho.
Muitos dos colegas adolescentes da alta classe sabiam do vexame daquele político famoso; sabiam que Jongin era filho de uma prostituta e um adúltero. Jongin tornou-se ainda mais calado, ainda mais fechado, um pouco menos excluído (porque uns e outros não davam a mínima para a fofoca). A sua alma já cheirava a abandono em diferentes tonalidades — pelos pais biológicos, pela avó naquele casarão, pelos corredores da escola. No entanto, jamais por Joana ou Sehun ou Baekhyun. Estes dois últimos, inclusive, sempre invadiam o dormitório e desciam um belo cacete nos meninos que faziam Jongin chorar. Foi assim que ganhou um pouco de respeito. Foi assim que conheceu Zhang Yixing, no meio da bagunça de uma porradaria: aluno chinês um ano mais velho. Ele não estava nas classes comuns, com matemática ou português; estudava artes plásticas, em um prédio diferente do mesmo colégio.
Conhecê-lo na puberdade piorou a bagunça interna de Jongin, não sabia se o amava ou se o amava demais. Ele era um menino alegre, meio desastrado, bobo e ria de qualquer piada. Passou a ser corriqueiro e essencial a presença dele em sua vida: nas tardes veranis, andavam descalços pelos matos ao redor do lago do colégio, viam o pôr do sol descer como se ensaiado por deidades e, quando ficavam cansados demais, deitavam sobre a relva, conversando bobagens de adolescentes, de peles suadas e joaninhas a caminhar na pele — sempre via uma ou outra no braço ou pescoço de Yixing e, era ali, bem ali, que seu olhar perdia-se em mais centímetros da pele dele, e acabava por encarar os cabelos claros balançando ao vento e os olhos fechados, descansando, como uma divindade num quadro pintado. Quando a noite enfim caía, Yixing roubava uma flor do campo e enfeitava a orelha de Jongin; um sorriso compartilhado virou, dias mais tarde, dois colares de dois sóis dourados, um para cada.
Eram inseparáveis, podia-se dizer.
Yixing confessou que era gay. Jongin confessou que era confuso. Amava mulheres, mas ainda não tinha certeza se amava homens também. Ficou por isso mesmo, na época: amizade e segredos e joaninhas e flores do campo. E o lago e o pôr do sol bonito.
Um dia tudo ruiu. Yixing veio para cima de Jongin, empurrando-o com força, chorando alto e acusando-o de ser um filho da puta traidor, nas próprias palavras. O coração acelerado sufocou a garganta de Jongin e, quando Yixing se acalmou e disse realmente o que havia acontecido, mais uma vez, Jongin não conseguiu abrir a boca e falar uma palavra sequer.
Minha família descobriu que eu sou gay!, dissera ele, numa voz tremida. Silêncio. Percebeu um roxo sobre a pele dele. Quis chorar, mas também não conseguiu. Yixing continuara: ‘Cê é o unico que sabe disso, Jongin! O único! ‘Cê espalhou que eu sou gay por aí?
É claro que não havia espalhado. Não conseguiu abrir a boca para falar. Em vez disso, abaixou a cabeça, envergonhado. Yixing lhe pediu para nunca mais olhá-lo na cara. Muitos meses depois, ambos descobriram que o delator havia sido um dos meninos do outro dormitório, a quem Yixing deu o primeiro beijo pueril. Mas já era tarde demais.
No final de semana, quando enfim pôde voltar para casa, Jongin entrou no quarto de Joana e chorou e chorou e chorou. Confessou que talvez — não sabia muito bem — gostasse muito de homens e que Yixing nunca mais o olharia nos olhos. Soluçou de perder o ar, foi abraçado com força. Naquela mesma noite, dormiu com ela na cama de casal, e viu como ela não teve vergonha alguma de despir-se na sua frente antes de vestir a camisola, de mostrar os seios completamente retos, sem silicone algum, ou o volume mais avantajado dentro da calcinha de renda: entendeu que ela confiava uma parte muito profunda da própria alma consigo e, depois de tanta lágrima, sentiu-se um pouco mais feliz. Peteco invadiu o quarto naquela noite, como se pudesse farejar a tristeza, e lambeu sua mão. Dormiram os três na mesma cama, e Jongin foi acalentado com o olor perfumado da camisola de Joana, parecido com um cheirinho bom de mãe.
Na semana seguinte, aconteceria a formatura. Jongin ganhou uma bela máquina de costuras, dada por Joana. Começou ali uma nova profissão.
E, desde então, nunca mais viu Zhang Yixing, seu jeito bobo ou seu sorriso outra vez.
{...}
Jongin pulou assustado ao acordar com a batida forte da porta do carro. Aéreo, olhou ao redor: estavam de volta ao casarão. No jardim, Joana caminhava, distanciando-se do veículo, e tentava apaziguar mais uma briga entre Misuk e Ji-Eun — a tia mais próxima do falecido. Mesmo de dentro do carro, conseguia distinguir as vozes abafadas: dinheiro e dinheiro e dinheiro; que é meu, que não é teu. A chuva ainda caía fresca, escorrendo abundante pelos vidros do automóvel. Fuçou entre os bancos de couro sintético até encontrar um guarda-chuvas e, entre um trovão e a briga, passou pela grama e pelas flores até a porta da casa. Joana, ao vê-lo aproximar-se, aproveitou para grudar debaixo do guarda-chuvas, fugindo da gritaria que aumentava.
— Não aguento mais essas duas… Deus me livre! — comentou ela, irritadiça.
Jongin bateu o guarda-chuvas no chão, tirando o excesso d’água.
— Quem aguenta? — concordou. — Ai… meu pescoço tá com um torcicolo ferrado. Dormi de mal jeito lá no carro. — A mão livre massageou a nuca cansada.
— Desculpa — pediu ela, meio rindo —, eu tive que te deixar todo torto no banco do fundo pra poder dirigir.
— Podia ter me acordado, megera.
Joana estalou um tapa no braço dele: — Não me chama assim! Palavra proibida entre eu e você. Aliás, você ‘tava dormindo igual uma pedra, não ia acordar nem se eu enfiasse o dedo nesse teu nariz catarrento.
Ele riu, massageando o braço dolorido, e continuaram trocando farpas ao subirem as longas escadas da casa, lado a lado, até despedirem-se, vizinhos de quarto.
Joana Doh sentou-se, cansada, frente à penteadeira, escovando o cabelo castanho-chocolate chanel. Lembrou-se da carta e, como prometido, abriu a gaveta de calcinhas, retirou com cuidado o papel guardado e entregou nas mãos dele aquele pedido de trabalho minucioso. A carta era delicada, cor de rosa, com uma letra bonita e palavras carinhosas.
“Querido estilista,
Joana me falou muito bem do seu trabalho. Tanto, que é impossível para mim viver sem me tornar uma de suas bonecas ao menos uma vez. Penso muito em ter no corpo um vestido bem volumoso, azul e prata feito o céu e as estrelas. O que me diz?
Tirei uma carta do baralho para você: a morte — mudanças estão por vir! Não tenha medo do novo em sua vida.
Aguardo sua resposta. Por favor, devolva a carta do tarot ou deixe-a com Joana. Minhas medidas estão atrás.
Um grande beijo,
Madame Cravo.”
Aquele pedaço delicado de papel parecia até ter vindo com perfume.
Deixou Jongin fascinado; um belo tolo.
Já enfurnado dentro do quarto após pegar a carta, ele releu-a pelo menos cinco vezes. Ou sete. Quase podia tatear ali a elegância de Madame Cravo e, meio sem querer, sentiu o próprio coração respondê-la. A verdade era uma só: sua paquera platônica aumentou ainda mais. Então, em vez de olhar o papel feito bobo outra vez, fuxicou papel e caneta na gaveta e, sentado no chão mesmo, pôs-se a escrever com a letra mais bonita que conseguiu.
“Querida cartomante,
Admito que o pedido de uma madame tão linda fez meu coração disparar. Será um prazer vesti-la com uma coleção exclusiva. O desenho do vestido e a tabela de preços estão atrás; veja se é do seu gosto. Devolvo também a sua carta de tarot (devo dizer, odeio mudanças… uma vez eu disse à Joana que você só veria coisa ruim no meu futuro, ou então jogaria uma praga: eu estava certo!)
Outro grande beijo,
Jongin.”
Começou assim. Meio despretensioso, meio romântico logo de cara.
Não se importou tanto em entregar-se tão rápido, sempre foi meio fraco com perfumes tão cheirosos. Seu pecado mais visível era amar fácil demais — Joana sempre zombava: desde o padeiro, à cozinheira do restaurante, à cliente antiga das suas peças de roupas e ao engraxate. Havia coisa mais romântica para capturar um apaixonado destes, do que uma carta cor de rosa perfumada? Ele caiu fácil na armadilha — Joana soube antecipar muito bem, ao descobrir que ele admirava Madame Cravo já muito antes. Quase deu risada ao vê-lo nas nuvens.
A resposta da cartomante veio três dias depois, concordando com o preço e tecendo elogios ao desenho e, a partir dali, tornou-se rotina conversarem por cartas cor de rosa e aromas borrifados no papel. Quatro semanas depois, ao negociar o preço de um tecido luxuoso na cidade, deu-se conta: merda. Estava se apaixonando de verdade. Merda. Por alguém que nem sabia como era o rosto. Merda.
A inquietação durou umas três horas; em seguida, veio a euforia.
Não conseguia deixar de imaginar como seria o rosto de Madame Cravo — nas horas mais inoportunas do dia. Seria mesmo uma mulher por trás do pseudônimo? Qual a cor dos seus olhos? Era brasileira? Gostava de feijoada? O cheiro da carta era o mesmo cheiro que carregava na pele e nas roupas?
Os dias veranis passavam lá fora; as cartas passeavam cá dentro.
Pela primeira vez em muito tempo, vivia uma emoção forte que não fosse angustiante ou ruim. Além disso, vivia aquilo pondo os dedos e o engenho nas roupas que tanto amava criar. Madame Cravo começava a despertar coisas pr'além do romântico: despertava o seu âmago de vida. Sorriu, costurando os fundos de um vestido vermelho carmesim.
Rapidamente, o quarto de Jongin e até mesmo um pedaço da sala foram tomados por manequins, roupas bonitas e trapos de tecidos pelo chão. Além dos pedidos normais do dia a dia pela vizinhança, a cartomante costumava pedir praticamente uma peça a cada semana, fazendo um pobre e apaixonado Jongin virar noites costurando.
Agora, passear na cidade e comprar tecidos significava escolher à dedo exclusivamente para ela (além de ter de escolher alguns para Joana e para outros clientes enxeridos, é claro). Tornar-se íntimo dela não foi difícil — ela riu da resposta em sua primeira carta, perguntou como ele poderia ter certeza da sua beleza e, ao responder que podia senti-la em cada palavra e frase e naquele perfume fascinante, ela deixou-o entrar de vez em sua vida. Disse, em outra carta perfumada, que podia tratá-la no masculino, se assim quisesse, porque era isso que poderia oferecer por trás de Madame Cravo: um homem jovem, de vinte anos. Jongin sempre foi fraco demais pro romance. Fraco demais para a pele morna de homens ou mulheres.
Fraco demais por Madame Cravo. Fraco demais…
“Querido estilista,
O último vestido caiu muito bem no meu corpo. Minhas amigas me elogiaram até morrer. Sei que estou mandando uma carta extra (e sei que ainda não terminou meu último pedido, por favor, não tenha pressa), mas senti saudades e resolvi te escrever. O verão neste ano está especialmente bonito. Gosta de tomar sol?
Hoje, tirei outras cartas para você: a imperatriz e o imperador — um grande amor está chegando em sua vida.
Sempre seu,
Madame Cravo.”
Espetou sem querer o dedo numa agulha. Levou o dedo à boca, pressionou-o nos lábios e, com a outra mão, puxou o desenho da saia volumosa para verificar a semelhança com o resultado na textura da roupa. Seria simples finalizar: bastava vestir a anágua por baixo das várias rendas esvoaçantes e delicadas. Ficaria alto na cintura, e destacaria o corset elegante que fazia para acompanhar a saia, de porcelana, dourado e rosado.
Também era simples levar até ela as coleções exclusivas de roupas espalhafatosas: após finalizar cada criação, guardava-as em caixas firmes — de tamanhos diferentes, a depender do pedido —, amarrava-as num belo laço e colocava-as no porta-mala do Omega CD, o carro que Joana pegava emprestado para dirigir todas as noites até a discoteca. Madame Cravo, entretanto, trabalhava lá apenas aos finais de semana, e confessou um dia, por carta, que era apenas um floriculturista humilde aos olhos conservadores dos demais. Sorriu ao imaginá-lo tão diferente: nos dias de semana, com um chapéu de laço bem veranil na cabeça, luvas grossas de jardinagem e o perfume natural das flores fazendo companhia. Já nos finais de semana, roupas pesadas, volumosas e longas cobriam-lhe o corpo, bem coloridas e chamativas, além da maquiagem artística adornando o rosto. Perguntou se o pseudônimo vinha da sua flor preferida — ele disse que sim. Perguntou qual era o seu nome verdadeiro — ele disse que ainda se sentia inseguro em contar.
Madame Cravo pagava muito bem por cada criação, sempre que uma caixa ia no carro no sábado pela noite, já de madrugada Joana trazia o dinheiro e sempre — sempre — vinha uma quantia a mais que o combinado. Chegou a devolver o valor extra por carta algumas vezes, mas nunca adiantou: o dinheiro voltava no próximo envelope aromatizado.
Entre tantas coisas, Jongin também adorava desenhar e costurar as próprias roupas: escolhia minuciosamente os moldes, verificava exatamente as próprias medidas e, então, fazia a bagunça: retalhos por toda parte, camisas estampadas, jaquetas coloridas, jeans claros e, às vezes, rasgados, ocupavam o guarda-roupas.
Embalou o último pedido de Madame Cravo e, junto a ele, uma caixa extra, com o conjunto de saiote, saia rendada e corset de porcelana. Em seguida, escreveu a carta em resposta à última.
“Querido,
Tudo cai bem demais no seu corpo. Tudo. Espero que goste do corset de porcelana, fiz pensando em você. Estou sempre pensando em você. Devo confessar que trocaria todas as estações por um ano inteiro de verão: sim, adoro tomar sol.
(Só consigo imaginar uma pessoa chegando em minha vida. Não é preciso abrir as cartas para adivinhar. Dessa vez, você abriu um tarot muito bom para mim).
Sempre seu,
Jongin.”
Teria de esperar o próximo pedido; até lá, como um tolo apaixonado, morreria de saudades e lembraria dela todas as noites em que olhasse para a lua — e todas as noites que não olhasse também.
Recentemente, faz três ou cinco dias, Jongin comprou um telefone de disco rosa pastel e, feito um jovem bobo, olha encantado para o objeto — não que seja culpa sua: é o telefone mais bonito que já viu. Enquanto espera Sehun atender a ligação do outro lado, enrola o dedo na cordinha espiral, deitado no chão do próprio quarto. A porta da varanda está aberta, e consegue vislumbrar os vagalumes acendendo e apagando no jardim escuro lá fora.
— Alô? — A voz chiada e fina respondeu do outro lado da linha.
— Esqueceu que tem irmão? Eu posso morrer e você tá nem aí.
Escutou a risada de Sehun zunir no ouvido. Afastou o telefone do rosto; logo, trouxe para perto novamente.
— A gente se falou faz uma semana. Credo…
— E como ‘tão os vinhos aí? E o Baekhyun, tá namorando? — aproveitou para zombar.
— ‘Tamo com uma safra muito boa de uva, sério. Você e a Joana tem que vir logo pra cá, visitar a gente. Eu e o Baekhyun nunca que vamos pisar aí, Deus é pai… já bastou sairmos. Aliás, ele tá de gracinha com a filha do vizinho, sim…
— Mentira! Que amor — riu — Vamos combinar sim, um dia. Quero só os melhores vinhos, hein?
— Claro. E cadeiras de fio pra tomar um sol.
— Que saudade de tomar sol com você… — Subitamente, lembrou-se das tardes em que tomava sol com Yixing, no lago perto do colégio. O coração parou por míseros segundos, logo, espantou o pensamento, mas a falta dele alojou na carne; e ficou lá, guardada. Na sala, a música de abertura da novela das seis tocou alto na televisão de tubo, tirando-o dos devaneios. — Sehun, tenho que ir! Vai começar a novela. Beijo, te amo.
Antes que ele pudesse responder qualquer coisa, Jongin bateu o telefone rosa no gancho. Correu do quarto, para as escadas, para o sofá. Joana já estava lá, e espremeu-se perto dela. Adorava contato físico; ainda bem que ela não reclamava e até gostava muito mais, enganchando o braço no seu. Passaram aquela tarde assistindo TV, juntinhos.
A bem da verdade, após mais uma briga sobre heranças naquela casa, uma semana se passou e a cólera não desgrudou do fundo do estômago de Jongin. Andava tristonho pelos cômodos da casa, malemá costurava as próprias roupas. No começo era engraçado espiar as duas apontando o dedo na cara uma da outra, no entanto, após tantos dias, ficava cansado só de vê-las paradas, ocupando o mesmo lugar. Não bastava muito para qualquer uma das duas lançar: pois fale direto com meu ‘adevogado, que pra você eu não devo dinheiro e satisfação, com um nariz bem arrebitado e o indicador para cima.
Jongin jura que se escutar a palavra advogado com um “e” entoado com muita vontade, suas olheiras vão afundar até o cérebro.
Faz em torno de três meses e alguns dias desde que troca cartas com Madame Cravo. Joana, percebendo uma pequena brecha, aproveitou:
— Meu bem, chega de ficar tão jururu… — disse, naquele tom doce. Sentou-se na cama ao lado dele, acariciou seu braço. — Olha… Quer ir me ver cantar nesta noite? É claro que eu vou fingir não ver você se esgueirar pra tenda da Madame Cravo…
Jongin sorriu, socando-a levemente no braço.
— Ah, Joaninha… acho que quero sim — desabafou, esgotado.
O luar cheio e azulado iluminava as ruas urbanas.
A discoteca onde Joana trabalhava como cantora ficava próxima da cidade, cheia de carros, prédios e conversação noturna. Por dentro tudo era bonito: globos prateados, pistas coloridas de dança, um balcão neon de bebidas, o palco de música e, aos fundos, uma bela tenda com seus tecidos imitando os planetas, estrelas e as luas — cheias ou não — adornando a entrada misteriosa do recinto.
No microfone, a voz de Joana Doh era ainda mais bonita e potente. Suave, afinada, melodiosa: perfeita para os (como ela mesma costumava dizer) fracos de coração.
Jongin era meio covarde; demorou uma hora inteira para decidir passear perto da tenda, e mais outra para tomar coragem de entrar.
As pontas dos dedos tremiam feito tolas.
Entrou na tenda de uma vez e, ao apresentar-se vergonhosamente como “sempre seu, Jongin”, sentou-se no banco duro de madeira e estendeu-lhe a palma da mão. Madame Cravo mascava um chiclete refrescante, e deslizou o polegar sobre as linhas da palma inquieta e suada dele, dando-lhe cócegas e revirando seu estômago. Se fosse sincera, a cartomante também diria que, se não estivesse sentada, cairia dura no chão.
Cristais de diferentes tipos adornavam a mesa, além de mais de três tipos de baralho e velas coloridas. A roupa dela estava deslumbrante: uma das criações mais belas de Jongin, um longo vestido volumoso com corset, preto, azul-escuro e prateado, imitando o céu dos astronautas. Na cabeça, uma tiara de meia lua. No rosto, uma bonita maquiagem de estrelas, combinando com as roupas.
— Vejo aqui um grande encontro… — Jongin deu risadinhas ao escutar a voz dele — Numa noite de lua cheia azul.
— Hoje é uma noite de lua cheia azul — provocou.
Obviamente, não tinha nada muito sério na maneira como ela lhe tirava cartas de tarot ou lia sua mão. Usava seu hobbie apenas para diverti-lo e paquerá-lo. Os trabalhos mais profundos com a abertura da mesa ficavam com outros clientes, que marcavam horário prévio e vinham exclusivamente para isso.
Como que ansioso, Madame Cravo apertou o próprio polegar entre o pulso e a palma de Jongin: — Um encontro do passado… e novas escolhas a serem feitas.
Jongin arqueou a sobrancelha. Yixing tirou, vagarosamente, a renda azul-escura que lhe cobria quase o rosto inteiro, encarando-o de alma nua, cheio de expectativas. Lento, demorou longos trinta segundos para Jongin perceber quem era a pessoa por trás do pseudônimo: arregalou os olhos. O coração acelerou a contragosto (se pudesse, olharia nos olhos dele com indiferença, sem parecer que teria um desmaio).
— Yixing?! — perguntou, alarmado e, ao levantar-se súbito do banco, deixou-o cair para trás num baque.
Yixing foi ligeiro. Passou para o outro lado da mesa, segurou-o pelo braço. Levou os dedos livres da outra mão para segurá-lo no queixo, tomando a atenção dele e puxando o seu rosto para mais perto. Meros segundos de silêncio. A respiração fresca do chiclete hortelã resvalou no rosto de Jongin.
— Por favor, Jongin… Eu esperei muito pra te encontrar — disse, tremido, ansioso.
Jongin deu um passo para trás, o coração batendo feito tolo no peito.
Nada além das respirações. Yixing esperou, então continuou: — Vai fugir de mim de novo?
Um arrepio percorreu a nuca de Jongin. Era aquela voz… deixava-o fraco.
— Não vou fugir — murmurou em resposta.
— Então, me dá uma chance? Pra conversar, pra dançar comigo hoje. Depois, faz o que quiser. Só… só hoje, tá bom? A gente não merece o que aconteceu lá atrás…
Silêncio. Olhos nos olhos.
Sentia tanta falta de Yixing. Percorreu cada centímetro do rosto dele e, ao chegar no pescoço, percebeu aquele colar em formato de sol, de tantos anos atrás.
— Você ainda usa ele? — perguntou, levando os dedos gelados de apreensão até a corrente, resvalando propositalmente na pele exposta.
— Todo dia.
Ainda estavam perto demais.
Jongin enfiou o rosto no vão do pescoço de Yixing, envolvendo-o lentamente num abraço. Fungou o cheiro doce e meneou positivo com a cabeça: sim, podiam conversar e dançar e, depois, fazer o que quisessem.
Yixing sorriu, abraçando-o de volta.
Longe da pista, perto de uma parede mais afastada, dançaram colados um ao outro, embalados pela voz de Joana. “Bem que se quis” parecia a melodia romântica ideal para sentirem o cheiro da pele um do outro, o toque morno, as testas apoiadas.
— Me desculpa por tudo… eu nunca deveria ter gritado com você, ou culpado você. Queria ter dito isso no mesmo dia que tudo rolou, mas não consegui — Yixing admitiu.
— Eu não consegui dizer muitas coisas, também… Sinto muito por tudo que você teve que passar. Queria estar lá pra te apoiar mas, é… não deu.
— Só por hoje, tá tudo bem. Vamos esquecer todas aquelas merdas. Vai dançar comigo a noite inteira?
Jongin sorriu. Fez que sim com a cabeça.
Com rostos tão próximos um do outro, o cheiro bom de suas peles, o toque dos dedos na cintura; era impossível resistir a um beijo que ambos queriam. Assim como de habitual, os dois eram lentos para agir, e encostaram vagarosamente as bocas, só para ter certeza de que tudo estava bem. Yixing deslizou a mão na nuca de Jongin, puxou fraco os cabelos curtos, fazendo-o se arrepiar e enfiar a língua no beijo. Encostado na parede dos fundos da discoteca, ao som das músicas de Joana Doh, Jongin perdeu-se no tempo. Não soube dizer quantos minutos ou horas passou ali, dançando colado com Yixing, dando-lhe beijos lentos e molhados, sussurrando bobagens e segredos sobre a vida… Entretanto, quando saiu de dentro daquele abraço morno, Joana já não estava mais no palco; o solzinho do fim do verão já apontava no céu azul e, com a boca inchada, surpreendeu-se ao perceber ter virado a noite inteira ali com ele.
Afobado, despediu-se com selinhos carinhosos e, pelo bem do seu coração derretido dentro do corpo, fez Yixing rabiscar o número de telefone em um guardanapo roubado da banca de drinques, com a promessa de que ligaria para ele assim que pudesse.
Quando abriu a porta da discoteca, quase ficou cego pela luz da manhã.
Naquele dia quente de fim de verão, ao voltar para aquele interior pacato num táxi, passou apressado pelo jardim do casarão e adentrou a porta da frente sem sequer dar carinho para Peteco. Jongin correu descalço, os pés retumbando no assoalho e nos degraus da escada, e invadiu brutalmente os aposentos de Joana Doh. Ela lia um livro quando ele jogou-se abrupto na cama de casal; enfiou o rosto no travesseiro livre ao lado e gritou contra ele. Gritou. E gritou.
Joana deu uma bela gargalhada.
— Como foi a noite? — perguntou, sugestiva.
— Sua biscate! — ele gritou, animado, chacoalhando os ombros dela. O livro caiu no chão, meio amassado pela altura da queda. — Você sabia o tempo todo, não sabia?!
Joana sequer conseguia falar: era chacoalhada, ao mesmo tempo em que ria, ao mesmo tempo em que tentava fazê-lo parar.
— Desculpa, meu bem — disse tremido, com dificuldade — Eu não aguentava mais o palerma do Yixing todo medroso de voltar pra sua vida. Eu só dei uma ideiazinha pra ele…
Jongin deu outro grito contra o travesseiro. Olhou para Joana, todo descabelado: — Ele. Me. Beijou! — E caiu contra a cama novamente, rolando de um lado para o outro.
Não era o seu primeiro beijo — e, fácil como só ele, estava bem longe de ser —, mas parecia muito com um: o coração ainda acelerado, a lembrança cravada na pele, o cheiro que ainda sentia e a euforia juvenil formigavam suas entranhas por inteiro.
Enfim, o pôr do sol caiu lá fora, apaziguando por hora as emoções.
Percebeu o quarto ficar escuro ao cair da tarde, e parou de costurar na máquina após às quatro no relógio.
Sozinho, tocou os lábios com os dedos e, ao perder-se nas lembranças novamente, sapateou pelo quarto. Jogou-se na cama, agarrou o travesseiro macio. Depois, levantou-se agitado, colocou o telefone rosa na varanda e fuxicou pelo guardanapo já todo amassado na pochete que levou à discoteca. Yixing escreveu o número e, ao lado, desenhou um coração. Quem entre eles era mais idiota?
De pés descalços, voltou à varanda, sentou-se na cadeira de fios, colocou o telefone de disco no colo e, por fim, discou o número anotado. Tocou três vezes antes de Yixing atender.
— Sabia que era você, gracinha.
Jongin arregalou os olhos, quase vomitando uma tripa para fora.
— Hã? Como você…? Você viu nas cartas, por acaso?! — Depois, ponderou melhor e, ao som da risada de Yixing, continuou: — ‘Pera aí… Quantas vezes você atendeu esse telefone hoje desse jeitinho aí até ser eu de verdade?
Uma gargalhada constrangida soou.
— Isso é segredo, mas só hoje eu já me declarei pro banco, pro padeiro e pra diarista, até chegar em você.
Outra gargalhada, desta vez, de Jongin.
— Meu Deus, que vergonha de você…
— Tá fazendo o quê?
— Tomando sol na varanda… Você?
— Cuidando da floricultura.
— Já tô com saudade…
Jongin, de olhos fechados, esticou o corpo e os pés num espreguiço, deixando a pele ser beijada pelo sol alaranjado do fim da tarde, quase já no início da noite. Escutava a voz meio chiada de Yixing embalando seus ouvidos, contando qualquer besteira sobre o dia: o café da manhã, um cliente chato, um lagarto bonitinho que apareceu no jardim… Amava jogar conversa fora, fosse com Joana ou, agora, com um paquera. O vento vespertino soprou, arrepiando sua pele e fazendo o espanta-espírito pendurado na varanda tilintar, melodioso, dançando com o vento.
Perdeu horas a fio ali, com o telefone rosa pendurado na orelha e um Yixing que não cansava de falar — tinham muito tempo de recuperar.
O trabalho de Jongin como estilista crescia cada vez mais: homens, mulheres, moças e rapazes vinham sempre bater à porta do casarão, agendando pedidos e solicitando a presença física nas casas com mais pompa — nestes casos, geralmente, ele passava o dia inteiro com as senhoritas filhas das ricaças, colhendo suas medidas de corpo, enchendo seus vestidos com alfinetes e dando várias dicas da moda dos anos 90. Era cansativo, mas amava (e, no fim do dia, saía com uma grana bem gorda na pochete).
Foi natural que os três — Joana, Yixing e Jongin — se dessem bem juntos. Bastou seis ou sete dias para estarem, lado a lado, em cadeiras de fio nos jardins do casarão, com chapéus e óculos de sol, aproveitando o fim do verão, as lambidas de Peteco e uma água de coco bem gelada, acompanhada de um samba no radinho de pilha inseparável de Joana.
Ela imitava a melodia com a garganta. Peteco latiu, e Yixing jogou novamente a bolinha, enquanto Jongin sugava barulhento o fim da água do coco. Logo, a fofoca começou:
— Ficou sabendo que a Misuk perdeu na Justiça? — sussurrou Joana, certificando-se de que ninguém além deles estava por perto.
Jongin tirou os óculos do rosto, segurou-os na mão, e abriu a boca, chocado: — Mentira?!
— Juro por Deus. Ela queria fazer falcatrua… Só que agora vai ter que dividir o dinheiro com todo mundo. Até comigo.
— Até com você — Jongin repetiu irritado, fazendo aspas com as mãos. — Me poupe! Você era esposa dele…
— Sim, mas não no cartório. A mãe do Baekhyun tem mais direitos do que eu, nesse caso.
— Até depois de morto ele dá trabalho. Se tivesse morrido pobre, não teria essa dor de cabeça. Quatro anos na Justiça, mulher! Quatro anos!
— Né? — concordou — Quem aguenta?
— Pois nem toque nesse dinheiro, que com certeza é amaldiçoado! — Yixing entrou no meio, supersticioso, após jogar de novo a bolinha para Peteco.
— Eu concordo. Foi isso que eu e o Sehun decidimos — disse Jongin. Virou-se para Joana: — Se o Jae não puxar teu pé de noite, quem vem é a Misuk, certeza! Viva e tudo.
Joana deu risada.
— Ai, Jongin… — riu um pouco mais —, só você, mesmo… O dinheiro dele vai me servir um belo par de peitos.
— Opa, querida! Aí, sim. Maldição quebrada na hora! — disse Yixing.
— Alguém quer um bolinho de fubá? O sol já tá começando a me torrar… — pediu Jongin.
Todas as cores e dores de amor enraizam, pouco a pouco, para dentro de Jongin. Era estranho ainda, depois de tudo, perceber aquele sentimento de tantas maneiras diferentes: em Sehun, Joana, Yixing e até em Nancy. Enfiou um pedaço do bolo de fubá para dentro da boca. Talvez fosse o samba que o fez pensar demais, no entanto, a melancolia do verão apertava seu coração contra as costelas; dói um pouco. Mentira; dói demais, às vezes.
Enfiou outro bolo de fubá na boca, tentando ignorar as vãs filosofias com doce. Funcionou, a princípio — na verdade, funcionou porque Yixing contou uma situação engraçada de um casal que comprou flores num outro dia; Jongin cuspiu bolo mastigado para fora ao dar uma risada feia, e a dor do amor de Nancy foi momentaneamente esquecida e preenchida pela cara de nojo de Joana ao vê-lo cuspir. Se fosse parar para pensar, entretanto, sabia que acabaria chorando. Por isso, quando Yixing foi embora e a noite caiu, dormiu agarrado às costas de Joana. Alguns dias são mais difíceis que outros — mesmo que se pense e fale de amores e de verões.
Não demorou muitos dias para Jongin procurar, na bagunça do quarto, o porta-joias antigo que usava. Pegou dali de dentro a corrente toda embolada de um sol e, a partir daquele dia, não tirou mais o colar do pescoço. Não precisavam, Yixing e Jongin, dizerem muito para perceberem que o relacionamento havia ficado mais sério: os colares respondiam melhor. Os beijos mais íntimos e carinhosos, também.
Aos finais de semana, Jongin gostava de ir de bicicleta até a floricultura onde Yixing trabalhava. Ele morava sozinho desde os dezessete anos (após o incidente com a família), há quinze minutos do trabalho. O pequeno casarão dos patrões dele tinha uma estufa nos fundos e a floricultura na frente. Já a casa de Yixing era mais simples, entretanto, mais confortável: tinha banheira para tomarem banho de rosas juntos. Foi natural esquecer-se do tempo enquanto estava entre as flores, assim como foi natural perder-se nos lençóis gelados de Yixing; já era muito tarde para voltar pedalando, ele dizia, com olhos pidões e vontade de pele na pele. Em dias como aquele, Yixing esquecia um pouco Madame Cravo e não ia para a discoteca. Em vez disso, curtia as noites de sábado e as manhãs preguiçosas de domingo com o abraço nu de Jongin.
As suas noites preferidas, entretanto, eram aquelas: Jongin chegava no casarão, debaixo da chuva de uma terça-feira, e encontrava um buquê de cravos brancos sobre a mesa, despretensiosamente. Joana dizia que Yixing havia passado pela manhã, esperado um pouco, tomado um café e, carinhoso, havia deixado um presentinho para Jongin.
Bastava aquilo para pegar o buquê e um guarda-chuvas, e caminhar trinta minutos inteiros até a casa de Yixing — fosse nas terças, nas quartas ou sextas chuvosas. E ele, ao abrir a porta, via um Jongin ensopado ali na sua frente, cheio de manias, amores e desejos. Mal tinha tempo de falar alguma coisa, pois Jongin atirava sem piedade o buquê contra seu peito ou rosto, dando aquela risadinha besta.
Os olhares se encontravam, toda terça chuvosa.
Toda quarta. Toda sexta. Pouco importava para eles.
Feito agora, feito hoje: olhos intensos e vontade de pele na pele.
Puxou-o para dentro da casa, os dedos deslizando na pele molhada pela chuva, as flores esquecidas em algum lugar do chão. A porta era fechada com as costas de Jongin contra ela e, apesar de toda uma cena agitada, Yixing pousava as mãos nas laterais do rosto dele de maneira calma. Em seguida, um beijo lento e cheio de tesão tomava os corpos. Apertava com vontade a bunda de Jongin entre os dedos, só para escutá-lo gemer daquele jeito manhoso no beijo. Ele tombava a cabeça na porta para respirar um pouco, e Yixing aproveitava para mordiscar e arrastar a boca no pescoço quente e perfumado.
Gostava de ter Jongin de muitas maneiras: de quatro, cavalgando por cima, de ladinho. Entretanto, nada era mais bonito do que vê-lo esparramado numa das poltronas, de pernas abertas, respiração agitada e olhos castanhos que imploravam uma chupada. Yixing atendia o pedido com gosto e muita saliva, sentindo Jongin arranhar ou puxar com força sua pele ou seus cabelos, enquanto gemia.
As línguas tateavam o gosto um do outro, as almas e corpos nus num enlace de pequenos fetiches.
Jongin era uma bagunça deitado na cama, ao final da noite, sonolento demais para sequer conversar. Depois dum banho rápido, dormiam agarrados na cama de casal até o sol da manhã os acordar no dia seguinte.
Naquela manhã, todavia, não foi o sol que os acordou, e sim o barulho insistente do telefone tocando. Sehun e Baekhyun, com vozes escandalosas do outro lado da linha, os convidaram para passarem uma tarde na vinícola, com muito salame e vinhos — tintos, rosés e brancos. Mais um banho juntos na banheira e estavam prontos para partirem no fusquinha amarelo de Yixing — havia o comprado no último ano, usado mas em bom estado, das mãos do patrão, que estava trocando de carro na época.
Joana deitava numa cadeira de fios quando Yixing e Jongin chegaram na vinícola; ela tomava sol de biquíni e chapelão, aproveitando o último dia quente da terra da garoa, e contava animada sobre ter agendado o silicone com um cirurgião plástico de boa notoriedade ali na cidade.
Logo, Yixing e Jongin juntaram-se a ela, pegando uma taça de vinho cada um.
— Um brinde ao filho da puta! — Joana disse, levantando a taça, rememorando a morte de Kim Jae e a herança enfim distribuída.
As taças tilintavam uma na outra.
Sehun, por outro lado, não quis beber ou brindar e trazia envergonhado uma moça que namorava já fazia dois meses, para apresentar a Jongin. Baekhyun caçoava da vergonha do amigo-irmão e Jongin, alheio, ponderava sobre como tudo aquilo era a conquista de uma família calorosa. Na casa da mãe Joana cabe de tudo um pouco: megeras, gays, conservadores, filhos de mães e pais diferentes e, talvez, uma prostituta perdida. As risadas da rodinha são escandalosas, e brindam com mais um pouco de vinho.
Yixing convida-o, de repente, para uma viagem no seu fusquinha amarelo. Sem destino muito certo, só a estrada e um pouco de dinheiro. É claro que ele aceita — talvez por influência da bagunça e do álcool dos diferentes vinhos. Tudo que tem são suas roupas, sua máquina de costura, sua família e Yixing novamente ao seu lado, com a juventude e o futuro todo pela frente.
Não arruma muita coisa na mochila: Jongin vai só com a roupa do corpo e umas três mudas extras, dobradas e bem guardadas.
Passarão, juntos, quinze dias fora.
Na estrada, Jongin pondera sobre Nancy. No seu pulso, prendeu aquele relógio inútil, que não dizia as horas, mas sim, angústias. Deixou aquela foto com Sehun, apesar dele ter protestado um pouco.
Talvez, seja ainda muito novo para encontrá-la novamente. Quiçá, precise chorar e rir ainda muito mais, até ter a chance de ver aquele riso forçado ou sentir o cheiro forte de gin logo pela manhã, novamente. Nancy sempre será uma parte sua — um amor muito dolorido carcomendo o avesso da pele.
Manoel não mora mais na mesma casa acabada, o prostíbulo foi fechado faz uns bons anos. Sehun nunca pareceu se importar; ele sempre disse que sua única família estava ali: Kim Jongin. Para Jongin, no entanto, é completamente diferente: queria cuidar de Nancy. Fazê-la sentir o que Joana Doh o fez sentir lá atrás, com apenas quinze anos e uma garganta fechada por vômito invisível. Queria ensiná-la que alguns amores doem e outros curam — assim como ele próprio vinha considerando aprender, ao pouco passar da vida. Queria dizer que ela não precisava mais levar a rotina nas madrugadas da cidade.
Tinha medo, entretanto, de acordar um dia e descobri-la morta — quando seria? Com vinte e cinco, quarenta anos? No dia seguinte? Não tinha pistas sobre ela desde os quinze anos… Já fazia muito tempo. Estaria em Copacabana, como um dia Kim Jae a prometeu?
O futuro era certo e incerto, sem respostas joviais. Quiçá, mesmo quando estivesse velho e doente, continuaria sem ter muitas respostas sobre amores ou verões: ao contrário, talvez chegasse lá com ainda mais dúvidas. A estrada passava, o vento entrava pela janela aberta do fusquinha amarelo e bagunçava os seus cabelos. Colocou óculos de sol, mesmo que não fosse mais verão. Descansou a mão na coxa de Yixing, ao seu lado, no volante.
Deixou-se levar pela estrada, tendo como moradia apenas a carne crua do próprio corpo e o abraço morno de Yixing. Sorriu. Aumentou o volume da música na rádio do carro.
Essa é uma história sobre amores e dores. Sobre morte e vida e não muito mais.
Era verão de 1994, nos seus dezenove anos de idade; até que virou outono. Teus sóis dão adeus, mas as existências continuam — ou terminam ou recomeçam. Teus sóis acalentam o avesso dolorido da pele e aguardam, com certa esperança, que um dia a vida já não doa tanto assim.