Chapter Text
Tudo estava escuro, a pouca luz que ali havia vinha do portal logo atrás e da lua que se erguia no céu. A luz noturna delineava a entrada de uma caverna e o leito rochoso do rio que a circundava. A água corrente passava pelas pedras do rio; uma brisa leve ondulava os feixes de bambu, levemente gelada. Tudo aparentava serenidade, mas para ele a sensação era outra: opressora como a de um Palácio e ao mesmo tempo nula como o final dos Mementos.
Akechi suspirou conformado. Seja lá que fosse a pessoa ou entidade que poderia mudar sua pena, aquele alguém estaria dentro daquela gruta. Marie disse que poderia mostrar o caminho, mas a escolha era dele. Ele é que tinha que decidir se seguiria por aquela trilha, ou se escolheria outro caminho.
Não que tivesse muita opção.
O detetive adentrou a caverna, e logo toda luz se esvaiu, tudo estava um breu profundo. Ele colidiu com algo sólido, mas continuou prosseguindo, sem saber onde ia, sem conseguir ver por onde ia. Não adiantava colocar a mão à frente do corpo para evitar colisões, ou tentar se guiar pelas paredes. Apesar de não conseguir vê-las, ele podia sentir que a caverna era cheia de estalagmites, já devia ter batido em umas quatro delas pelo menos.
Apesar do som das eventuais colisões, a caverna estava praticamente silenciosa, o único ruído por ali era o de água pingando, um ruído que ia e vinha. Uma parte dele estava atenta e desconfiada, a outra plenamente desorientada. Tudo aquilo lhe parecia uma emboscada, mas porque alguém se daria o trabalho de preparar tal armadilha? O que tinha a perder afinal? Na pior das hipóteses, Romeo poderia levá-lo de volta à entrada.
Akechi continuou seguindo pela caverna, colidindo de novo com uma estalagmite. Claro que soltou uma breve exclamação de dor, o que chamou a atenção de algo por ali. Ele ouviu outra coisa, um som indistinto, um arfar gorgolejante, uma massa que se arrastava, e um rosnado redundante.
"Cuidado!"
Fenrir o alertou, mas já era tarde. Ele sabia que algum Shadow se aproximava, e atacou na direção do som, desferindo um corte à sua esquerda e provocando um ruído de estouro. De algo escorrendo, de sombras emergindo e mudando de forma.
Shadows.
"Reduza-os a cinzas!"
Akechi exclamou, usando uma magia de fogo, não porque era o melhor que tinha com Fenrir, mas só para ter um vislumbre momentâneo de seus adversários. Eram três, criaturas brancas, parte pássaro e parte humana, um Shadow que já tinha visto no Palácio de Shido. Os Shadows retaliaram, e ele revidou novamente com Maragion. Foram necessárias mais duas tentativas para derrotar aquelas criaturas.
A caverna estava novamente silenciosa, o único som que se ouvia era a água gotejando e o som de sua respiração levemente ofegante. Sem as chamas do combate, tudo estava escuro novamente.
"Você está sendo descuidado."
"Você tem alguma outra sugestão?"
O detetive contestou a reprimenda de sua Persona, a relação entre eles não havia melhorado muito, havia sempre um tom de animosidade.
"Poupe sua energia espiritual."
"E como eu vou conseguir ver o caminho?"
"Com seus olhos. Como acha que Akira conseguiu passar por aquele labirinto no Palácio de Niijima? Ela sabia por onde ia."
"Mas eu não. Eu só a segui."
"Abra seus olhos, abra sua mente. É com a mente que você deve ver o Metaverso."
"Como?!" ele contestou, não era algo tão simples. As sugestões de Fenrir eram vagas, e isso na melhor das hipóteses. Diante daquele pensamento, a fera bufou, mas tentou esclarecer a questão.
"Entenda o ambiente onde você está. Concentre-se na distorção, não tente ver além dela: entenda ela. Siga esse padrão."
Falar era fácil. Falar era tão fácil! Ele não conseguia ver nada além da escuridão daquela maldita caverna!
"Não é só uma caverna."
Mesmo quando tentava ajudar, a voz de Fenrir ainda soava como uma provocação. O detetive respirou fundo, tentando ignorá-lo, tentando se acalmar, tentando colocar os pensamentos em ordem.
Não é só uma caverna. Quando eu cheguei, parecia a entrada de uma caverna, com um rio logo abaixo, numa noite escura. A única luz que tinha era a da lua e do umbral logo atrás...
Umbral.
O portal era um torii, um torii vermelho que emitia uma luz levemente azulada.
Não é só uma caverna. É algum tipo de templo ou lugar sacro.
Tudo estava claro agora. Ao menos um pouco mais claro. Podia ver melhor seus arredores, o relevo das paredes cinzentas da caverna, as estalagmites e estalactites que atuavam como colunas ali. Ele ainda ouvia a água pingando, mas não havia poça ou sinal algum de água ali perto. Ele podia ver com clareza o que havia ao seu redor, mas não mais do que alguns metros.
"Agora tente não fazer barulho."
Akechi revirou os olhos diante do comentário, mas seguiu o conselho de Fenrir. O lobo retornou a si, sua Persona se desconjurou, ficando em silêncio, deixando-o com seus próprios pensamentos. O detetive prosseguiu com cautela, atento aos arredores, usando não só dos sentidos mas também de outras sensações. Conseguiu percorrer um bom caminho, mas sem sentir nada que se assemelhasse a uma falha na cognição, algo que sinalizasse um refúgio, uma sala segura.
Pelo contrário. Havia vários pontos em que a passagem se abria, numa espécie de câmara, onde os Shadows ficavam de tocaia, impedindo a passagem para as profundezas da caverna. Alguns dos Shadows ele reconhecia, outros não, mas nenhuma das batalhas foi preocupante. O que preocupava era o cansaço que surgia aos poucos e ficava cada vez mais exigente. Cada combate sacrificava um pouco de sua saúde, caso decidisse atacar fisicamente; ou um pouco de sua energia espiritual, caso revidasse com magia. Até o simples ato de ver não era tão simples assim, também gastava energia. Se se desconcentrasse por um momento sequer, tudo voltava a ficar escuro. E ele precisava saber por onde ia se quisesse seguir por aquele labirinto.
Após ter sido obrigado a voltar por se deparar com uma trilha sem saída, Akechi continuou seguindo adiante, indo pelo caminho à direita. A exploração daquela caverna estava sendo por tentativa e erro, ele fazia o possível para memorizar o percurso, mas já não era mais possível saber de que lado era a saída.
O caminho que percorria era estreito mas parecia dar numa câmara, parecia abrir mais adiante, como tinha acontecido antes. Mas ele podia ver mais claramente agora, havia algum tipo de luz mais adiante. Uma luz quente, alaranjada, como uma chama.
"Cuidado. Pode ser uma armadilha."
Fenrir se manifestou, o alertando, dando uma mordida no cachecol dele para poder detê-lo. Apesar de brusca, a intervenção da fera o alertou de sua atitude imprudente. Akechi reconheceu que quase agiu de forma impensada, seu primeiro impulso foi ir logo naquela direção. Ele quase riu de sua própria estupidez.
"Bem, achei que você fosse dizer que isso é uma armadilha."
O lobo gigante simplesmente bufou, respondendo a provocação de seu eu.
"O que eu poderia dizer? Seu instinto de sobrevivência anda mesmo enfraquecido. Lembre-se de ter cuidado."
Akechi tinha que admitir que Fenrir tinha razão. O lobo retornou a si, e ele se aproximou daquela câmara, com passos lentos e fazendo o menor ruído possível, de olhos atentos para o que haveria ali.
Havia um vulto ali, segurando uma lanterna com uma mão, erguendo-a no alto para que a luz incidisse sobre toda aquela área, perambulando pela câmara. O detetive parou de súbito, simplesmente congelara diante daquela figura, da figura que carregava aquela lanterna.
Ela era exatamente como Akira --- o mesmo tamanho, os mesmos traços, o mesmo cabelo curto ondulado. A vestimenta dela era estranha, um haori branco e um hakama vermelho, como uma miko, uma sacerdotisa de um templo. Mas outra coisa o assustava, o paralisara: não era a presença dela ali, nem a indumentária.
Eram os olhos. Os olhos dela brilhavam dourados por trás das lentes dos óculos.
Um Shadow. Um tipo de Shadow que ele se especializara em caçar, um tipo de Shadow que Morgana e os outros Ladrões Fantasma haviam comentado a respeito. Uma manifestação de um desejo reprimido, obsessivo, um desejo que levava à distorção da visão de mundo de uma pessoa.
Ele a encarava sem entender. Morgana havia dito que usuários de Persona não possuíam Shadows. E antes disso ele mesmo tentou colocar no Navegador o nome de cada um dos Phantom Thieves, sem ter resultado. E além do mais, como Akira poderia ter um Shadow? Justo ela? Uma pessoa tão gentil poderia ter mesmo um lado distorcido?
"Akechi-kun! Eu --- eu te achei! Eu finalmente consegui te encontrar!"
Ela exclamou num sorriso incrédulo, num sorriso que poderia ser mesmo de Akira. Mas a voz era distorcida, um timbre metálico distorcia seu tom gentil. O detetive não se esboçou reação, sem conseguir saber se aquela Akira representaria ou não uma ameaça.
"Você... não parece muito feliz. Eu... te assustei? Estou... te assustando?"
Ela comentou, hesitante, insegura. Se ela fosse mesmo hostil, porque hesitaria em atacá-lo? Já que não sabia se ela era uma adversária ou uma potencial aliada, o detetive decidiu se juntar à conversa.
"Um, não." ele negou, mas aquela Akira o encarou um tanto descrente, então resolveu ser sincero. "Bem, talvez um pouco. É que eu não esperava... te encontrar assim."
"Qual o problema? Seu traje não é novidade para mim."
Sim, estava com a mesma vestimenta de mercenário que assumia quando entrava no Metaverso, mas não era essa a questão! Não era a si que se referia, e sim a ela!
"É... Eu não esperava encontrar você assim."
"Assim como?"
Porque ela tinha que dificultar as coisas?!!! Era frustrante ficar naquele jogo de adivinhação, mas...
Se ele dissesse pura e simplesmente o que achava, não iria magoá-la? Talvez até… enfurecê-la? Mesmo sendo um Shadow, não queria lutar contra ela. Se ela se estressasse, se se sentisse ameaçada, acuada, ela poderia reverter a uma forma mais hostil, mais primitiva.
O detetive respirou fundo antes de se manifestar, se expressando pausadamente, com cautela.
"Assim... Desta forma. Você... sabe como você está?"
Aquela Akira ficou um tanto chateada com o questionamento, esboçando um sorriso triste e fechando os olhos, suspirando. Ela abriu os olhos dourados e o encarou, cheia de pesar.
"Sim. Eu sei. Eu sou uma Sombra... O verdadeiro Eu. Um desejo reprimido, um desejo negativo." ela constatou. "Mas... eu... ou meu outro eu, não sei... nós discordamos. A maioria... ok, todo mundo me vê como algo nocivo. Nocivo a mim mesma. Mas não nós. Dói, mas… não é de todo ruim. Mas todo mundo acha… ruim."
Até mesmo Akira tinha algo a esconder, algo repreensível. E, a julgar pela hesitação de seu Shadow, era algo que ela se envergonhava, algo que os outros criticavam. Mas o quê? O que seria? Akechi tinha uma ideia, algo que observara durante às vezes em que saiu com Akira, mas aquela ideia não se encaixava no contexto.
"O que seria assim tão ruim? Você… sempre me pareceu alguém tão admirável, tão gentil, tão bondosa… é difícil te imaginar tendo um Shadow."
"É. Você acha que é algo impossível, não é?" o sorriso dela era amargo, quase que irônico, zombando daquela opinião. Mas logo sua expressão voltou a ficar pesarosa, lamuriosa, hesitante. "Talvez... meu outro eu tenha feito algo que não deveria. Talvez eu seja mesmo algo que não deveria existir. A maioria acha que é algo com que eu --- ela --- não deveria se importar, mas não conseguimos. Não consigo deixar isso de lado."
"O quê?"
"Você."
Ela respondeu de forma suave, ao invés de acusá-lo como deveria, o que machucava ainda mais. Claro. Ele era escuridão, não só para si, mas também para os demais. O que ela disse assim que o viu ali?
'Akechi-kun! Eu… eu te achei! Eu finalmente consegui te encontrar!'
Ele era a causa da distorção dela.
"Eu... o que eu desejava… era... te encontrar. Encontrar o que tanto te incomodava, o que tanto te entristecia. Eu queria… ajudar." ela disse, hesitante, e logo soltou um murmúrio dolorido. "Mas... eu falhei."
Então era isso? Era isso o que ela sentia? Ele não queria... magoá-la. Feri-la daquela forma. Ele tentara a alertar uma vez, mas talvez não tivesse sido claro o bastante. Teria que insistir dessa vez.
"Akira… Você… não precisa se sentir assim. Foi culpa minha. Você não pode assumir a culpa pelos meus erros ou por minhas ações. Fui eu que escolhi esse caminho. E sou eu que devo tentar corrigir isso. Não você. A culpa não é sua, é minha."
A jovem --- a sombra dela --- parecia estar à beira das lágrimas, relutante em admitir aquilo.
"Eu sei. Todo mundo diz a mesma coisa. Que eu não me deveria me sentir assim. Mas... quem são eles para dizer o que eu devo sentir?!!! O que eles sabem sobre isso para poder desprezar o que sinto?!!!! "
Ela exclamou, indignada, sombras negras se condensando em torno dela. Ela gesticulava, expressando sua recusa, a lanterna balançando. A chama que ela carregava saíra de controle, uma labareda os cercara, envolvendo as paredes da caverna.
Ela estava regredindo. Se continuasse assim, não tardaria para se transformar numa forma monstruosa e hostil.
"Eu... cheguei até aqui. Eu não vou voltar. Não vou simplesmente me conformar e sumir. Akira abriu mão de uma de suas próprias Personas para me criar; e, ainda assim, não conseguiu se livrar de mim. Não há como simplesmente se livrar desse sentimento." ela vociferou. "Eu cheguei até aqui, e eu --- não, nós --- não teremos descanso até cumprir meu propósito."
Ela inspirou, suspirando, procurando se acalmar. Passou a se focar em sua respiração, pausando-a deliberadamente, tentando controlar seu tom de voz. As chamas foram recuando, aos poucos, até voltar para a lanterna. E ela voltara a si após o rompante, sua voz saindo mais baixa, só um pouco mais pausada. Num tom de esclarecimento, de explicações.
"Agora que te encontrei, eu vou ficar com você. Eu posso te guiar até Ela, e Ela poderá revogar sua pena. E então... poderemos nos encontrar de novo. Podemos... tentar de novo. Passar isso a limpo."
Sim, entendia o desejo de Akira. As coisas terminaram mal entre eles, nunca teve tempo para se desculpar, para se expressar claramente, para se justificar. Para se despedir.
"Hmn." Apesar de concondar com ela, iria abordar aquela questão uma outra hora. Por ora, era melhor mudar de assunto. Perguntar sobre outra coisa, qualquer coisa. "Ela quem?"
"Sua Proeminência, Amaterasu."
"Hm."
Akechi se esforçou ao máximo para não franzir o cenho. O nome e o título indicavam uma divindade japonesa, só não sabia qual. Depois de tudo que passara, não tinha bem um crença ou religião. O nome deveria lhe trazer mais alguma coisa, alguma ideia, mas nada lhe veio à mente.
"Então... Você me permitiria, Akechi-kun? Eu posso te ajudar... eu... eu quero ajudar."
Ela comentou, hesitante, o que era um grande contraste com a Akira que imprudentemente agia antes de perguntar, antes de parar para pensar.
"Umn. Sim."
"Mesmo?" ela questionou, um tanto desconfiada, mas ainda esperançosa.
"Sim. Não é como se eu soubesse que direção tomar nesse labirinto."
"Hmm. Então está certo!" ela exclamou de súbito, visivelmente mais animada. "Eu farei o meu melhor! Pode contar comigo!" Era essa a Akira que ele se lembrava. "Basta me seguir."
"Certo, A...kira."
Ele hesitou ao pronunciar o nome dela, porque não era bem ela que estava a sua frente. Era só uma sombra.
"Hm. Você está meio hesitante em me chamar. Para falar a verdade, eu entendo. Eu... sou parte de Akira, mas... não sou ela."
"Joker?" Akechi sugeriu.
"Não, eu só ajudava esse lado de Akira. Eu... não me lembro do meu nome. Eu mudei para que eu pudesse te achar. Alguém disse qual era meu novo nome, mas eu não ouvi direito. Mudar de forma é um tanto... extenuante." a jovem confessou, num suspiro, quase como se tal cansaço viesse novamente à tona. "Mas, sabe de uma coisa? Talvez eu possa usar um codinome até lá." e ela começou a divagar. "Como... como o seu. Como um pássaro... Akira viu um pássaro antes de nossa ligação ser reduzida. É... acho que é um bom nome. Você pode me chamar de Robin até que eu me lembre do que eu era."